Precipício

Se olhar para baixo, cai.
Existe um lugar ainda mais sombrio do que esta ponte artesanal de madeira sobre o precipício que você tem atravessado. De um lado, fogo; do outro, gelo. No meio, ah, no meio há um vazio imenso e é tão difícil descrever o vazio. Como um buraco negro onde todas as emoções são anestesiadas, uma por uma, como se tudo o que se sente não fizesse mais o menor sentido ou não tivesse importância. 

O vazio é o mergulho silencioso em água parada. É o corpo leve flutuando no vácuo, a cabeça pesada, o barulho estarrecedor de dentro. E cada vez que olha para baixo, sente o vazio mais perto.

Então teus olhos fitam o nada que, de alguma forma, se assemelha ao que você sente hoje. Um transbordamento de nada. E por se sentir tão familiar, fita o vazio como se o pertencesse, como se quisesse derreter-se em seu estado líquido e fundir com ele.

Mas antes que decida qualquer coisa, me deixa te contar que eu vim aqui só para te ver. Ainda que todo mundo tenha se afastado, eu estou aqui, do outro lado da ponte, quando passar pelo fogo ou pelo gelo. Me leve ao teu lugar favorito quando fechar os olhos. Quando você mergulha, eu estou no vazio contigo. 

Nunca se esqueça, você existe no teu passado. Você existe em mim, olha bem nos meus olhos. Sente esse fiapo de sorriso aqui fora? Era teu. O presente é apenas cegueira momentânea. 

Nunca se esqueça de que você existe nas horas de quem te ama, nos sonhos daquele amor antigo, nunca se esqueça de que mesmo quando é nada, é tudo, ainda que para alguém.
Então respira fundo, não pula. Não se anule, ainda não. Segura a minha mão, esfrega os olhos, veja quantas mãos te carregam enquanto não sente teu peso. Veja quantos sorrisos enxugam tuas lágrimas. 

Volta em mim.

Há sempre o depois, depois do agora.
* escrito em Maio de 2014

Esquece

Tanta coisa pra (re)dizer, (re)escrever, (des)entender,verbo abafado, sem voz.
Um milhão de dedos, medos, um excesso
(e também uma grandessíssima falta)
de nós.

É que nas noites eu amanheço 
poça lúdica em travesseiros. 

Deixa o dia esfriar a água salgada que escorre do lado esquerdo. 
Esqueço.

Eu sei que a vida não foi gentil contigo

Eu sei que a vida não foi gentil contigo. Eu sei que você teve o coração destruído algumas vezes. Também sei que há pouco a vida te mastigou vagarosamente os ossos, os nervos e tudo o que você tem por dentro e te cuspiu cheio de dores, medos e sofrimento. Eu sei. Eu segurei a tua mão nos últimos 365 dias, eu sempre estive ali. Eu fiz bolo de chocolate e te levei flores, eu tentei tanto te fazer sorrir, eu quis amenizar um pouco, ainda que em toda a minha insignificância, todos esses dias ruins. Você sabe. Eu segurei tua mão pelos últimos 2000 dias.

Eu te levanto sempre que você cai, a gente sabe. E é tão natural que você vem quando precisa. Quando batem os medos, quando tem insegurança, quando há solidão. Você vem quando precisa e eu não titubeio um minuto porque te quero feliz e tenho amor sempre sobrando. E então você vem quando precisa, mas quando não precisa, você vai. E eu tento me convencer de que as pessoas são assim mesmo, de que talvez eu tenha um ímã filantrópico que atraia as pessoas para que elas se curem em mim e depois se vão. 

Mas, às vezes, não precisa ser como é. Às vezes, machuca um pouco, não muito, mas machuca. Machucam a indiferença, a falta de carinho e as respostas atravessadas. 

Eu sei que, dia após dia, um milhão de pessoas interessantes cruzam teu caminho. E o meu também. Eu sei que é tão fácil se encantar pelo novo quanto se desencantar pelo velho. Eu sei que muitas vezes você não pensa em mim. Talvez você até se esqueça do calor da minha mão. Mas a gente sabe que a gente sempre volta. Por algum motivo, a gente sempre volta. E eu não quero nunca suspeitar que seja por necessidade, porque necessidade não é amor.

Quando não houver mais tanto amor, quando teus olhos forem ofuscados pelas qualidades dos outros e as minhas ficarem bem escurecidas, quando os meus defeitos começarem a gritar, me deixe ao menos na prateleira dos melhores amigos. Lembre-se de todas as vezes em que segurei a tua mão, do quanto tentei te fazer sorrir e do tanto que insisti para que se sentisse amado. Quando tudo em mim se apagar, quero que se lembre de que eu sempre estive aqui.

Está tudo lá 

Esta tarde choveu. Começou mansinho e o céu foi escurecendo devagar. Uma velha lembrança de tarde chuvosa me molhou os olhos.O sofá dos meus avós, as tardes assistindo ao Sítio do Pica Pau Amarelo, o bolinho de chuva. Fecho os olhos, sinto tudo, o gosto da canela, o cheiro de açúcar, a voz da Dona Benta, a textura do veludo do sofá, a silhueta da minha avó, os pequenos barulhos. 

Sinto tudo. E respiro fundo com uma esperança quase infantil de reviver tudo em mim. Fecha os olhos, tenta. Está tudo lá ainda. Os quadros pintados pela sua mãe, o pote de amendoins japoneses do vovô, o Odissey embaixo da televisão. Respira mais fundo, sente o cheiro das cortinas. As pontas dos dedos correm os batentes das portas, as maçanetas, os azulejos da cozinha. Está tudo lá. Os remédios da vovó, embalados em pacotinhos, a bandeja com café fresco na garrafa térmica, o pote de cerâmica de açúcar e o adoçante líquido. Está tudo lá. O calendário na parede, perto do relógio, a pequena pia de lavatório, o filtro de barro no canto da cozinha, os vitrôs semi abertos. Estão todos lá. As xícaras de vidro alaranjadas, os pratos decorados, o armário de panelas, os potes azuis com tampas brancas de feijão, arroz e açúcar. Aperta os olhos e lembra mais. Lembra a toalha da mesa, a bacia de louça e o vaso de flores artificiais. Lembra o forninho cheio de batata doce assada, lembra o cheiro do pinhão. O telefone, 2116012, trim, trim, tenta discar. O armário embutido e a manteiga em lata. Lembra a mania de colocar a tábua na porta pra evitar ladrão. Lembra a porta telada antes da porta de madeira, abre o trinco. Inspira o cheiro de naftalina do quartinho, o cheiro de livro velho misturado com veneno de baratas. Inspira o cheiro metálico da oficina do vovô, o churrasco de espetinho, sente o banho de mangueira no quintal. Sobe no telhado, esfrega a folha de manjericão nas mãos. Debruça no muro, tem pitanga. Sente o cheiro dos pêssegos na pessegueira do vizinho. Inspira a textura da rosa nos dedos, a polenta fresca no forno. Está tudo lá. 
Em algum lugar, a casa ainda existe e seus detalhes ainda são vivos. Em algum lugar, a vovó ainda anda pela cozinha, o vovô dorme depois do almoço e a Dona Benta dá conselhos pra Narizinho. Em algum lugar ainda chove fininho e tem o sofá de veludo e cheiro de canela. 
A vida é cruel com o que um dia foi tão a nossa essência, mas se a gente apertar bem os olhos molhados, ainda está tudo lá. Está tudo lá.

Este não é um texto de auto ajuda, mas talvez seja.

Eu não sei vocês, mas faz um bom tempo que não me sinto inspirada. Pra nada, quem dirá para os meus textos. Não tenho inspiração pra criar, pra produzir, pra acreditar num mundo melhor, pra fazer a vida acontecer.
Há quem diga que a culpa é do mundo de hoje, há quem diga que é a idade. Realmente, há quem diga um pouco de tudo, e este também é o motivo. 

No entanto, quanto mais olho em volta, mais percebo a falta de inspiração nos outros. A vida vem nos esmagando como um enorme rolo compressor e em uma velocidade assustadora. Cada pedacinho de sonho, cada ideiazinha genial, cada pequena fé no ser humano, tudo é delicadamente esmagado pelo negativismo que toma conta da nossa contemporaneidade. É como se hoje em dia fosse legal ser pessimista. O “não” é o grito mais alto. 

O que une as pessoas atualmente são exatamente as coisas pelas quais são contra, não a favor. É fato que o ser humano busca coisas em comum para criar e manter seus círculos sociais. Se no pós guerra, a geração perdida de artistas se unia em volta da arte, hoje nos unimos em volta dos descontentamentos em comum. É um poço sem fundo. 

Há quanto tempo você não encontra alguém que verdadeiramente te inspire? Alguém que te faça querer correr atrás das coisas que você gosta, alguém que te incentive a ser você em seu estado mais bruto, sem meio-termo, sem diz que diz? Há quanto tempo você não encontra alguém que te motive, que te faça querer ficar por perto, que te dê ânimo pra continuar?

O que mais vejo é gente pregando exatamente o oposto. E eu sinto falta dessas pessoas inspiradoras, cheias de energia vital que transformam o dia de alguém. Talvez você também sinta falta. 

A verdade é que a gente espera sempre que algo venha e, meu amigo, não dá pra viver de espera. Ninguém nunca te trará motivação por pouco mais de alguns dias. Quantos anos da sua vida você ainda gastará esperando que algo ou alguém mude o que você tem hoje?

Seja você a pessoa que inspira. Seja você a pessoa que leva vida à sua volta, que chega distribuindo amor. Seja você o discurso do bem, o pivô da união através do contentamento, das coisas em comum. Seja você a mão estendida, o abraço apertado, a sensibilidade de perceber os momentos de quem está à sua volta e oferecer seus ouvidos, um café, um poema. Seja você o portador de otimismo e inspire, se inspire. 

Comece distribuindo sorrisos pra todas as pessoas que passarem por você hoje, leve amor, prosperidade e saúde em todos os seus discursos. Cerque-se apenas de gente que te faz bem. E repita isso todos os dias. 
“Try to make at least one person happy every day. If you cannot do a kind deed, speak a kind word. If you cannot speak a kind word, think a kind thought.” (Lawrence G. Lovasik)

O homem da nuvem de pó negra

A primeira vez que o vi, ele andava curvado, suas pernas eram tortas e seu rosto trazia vincos sofridos perto da boca, como se tivesse passado a vida beijando o ar. Seus olhos eram turvos de lágrimas corridas, caíam aos cantos como quem morre de amores e olhavam apenas para baixo.
Todas as outras vezes que o vi, ele caminhava da mesma maneira. O peso sórdido e negro de uma nuvem de poeira sobre as costas. E não é exagero. As costas curvadas carregavam uma nuvem de pó preto que o envolvia dos pés ao pescoço. Raramente eu conseguia ver qualquer pedaço do corpo dele que não fosse o rosto, em algumas ocasiões consegui ver suas mãos. Dedos finos, magros, as rugas muito nítidas pela foligem preta, as mãos sempre abertas como se estivessem sempre à entrega.
Não sei por quantos anos o vi caminhar do outro lado da rua, sempre na direção oposta. Suspeito que ele nunca tenha me visto, sequer tenha visto outro transeunte, ou árvore, ou pássaro que tenham respirado o mesmo ar que ele. O que me incomodava é que ninguém parecia lhe notar, ninguém que cruzasse a rua se importava em perguntar se precisava de ajuda com aquele peso todo, ninguém se interessava por onde ia, de onde vinha. Nem eu.
Por muitos anos cruzei com o homem da nuvem de pó negra e sequer parei. O mistério da sua vida me bastava. A sujeira, a maneira como o pó, sempre tão denso, pairava sobre ele e se locomovia junto, como um cachorrinho que abana o rabo seguindo o dono. Não era uma simples sujeira de quem não toma banho, era uma nuvem de pó. Cheia, negra, como  tempestade tropical, como se tivessem derrubado um barril de grafite sobre ele e o grafite pairasse no ar por magnetismo. Aquilo me perturbava, mas me bastava.
Fazia sol naquela manhã de quinta feira, deve ser muito quente embaixo da nuvem negra. Porém, hoje, havia um fato inédito. Uma moça de vestido azul e cabelo trançado conversava com o homem. Pegava em sua mão e sorria. Devia ter uns vinte e poucos anos e era tão bonita. Percebi, no entanto, que sempre que a moça pegava em sua mão, o rosto do homem clareava. Eu conseguia ver sua pele avermelhada, havia um brilho nos olhos, um esboço de sorriso. Não tinha mais que 35 anos, o homem da nuvem negra, embora eu tenha especulado uns 170 anos em algumas ocasiões.
Comecei a voltar no mesmo horário e todos os dias a moça dos cabelos trançados aparecia. Ele vinha dela. Quando caminhava de volta, voltava dela. Ela era seu ponto de partida. E ela sorria, dançava, tocava-lhe o rosto, segurava-lhe a mão, falava, falava, sorria, dançava. E quanto mais lhe tocava, mais ele brilhava. Seus olhos se abriam (eram castanhos), seu rosto dissipava a poeira cinzenta, havia um rubro em suas bochechas e ele sorria sorrisos curtos. Entretanto, depois de alguns encontros, comecei a perceber algo muito inusitado. Sempre que ela ia embora, a poeira do homem aumentava. Toda vez que ela se afastava sorrindo e mandando beijos com as mãos, um chumaço de pó negro se transferia das suas mãos e calmamente se fundia à sua nuvem de poeira. Ele então curvava as costas mais um pouco para distribuir melhor o peso. Seu semblante voltava a ser exatamente como eu conhecia: triste.

Aquele pó era pó de amor. A nuvem negra que o homem carregava era pó de amor! Eram pequenas partículas de paixão não correspondida, amor não dado, amor doído. Eram minúsculas migalhas do amor de alguém, migalhas de atenção quando convém. Grãos de pura entrega, de doação, de coração aberto. A nuvem negra eram os beijos no ar, as mãos sempre estendidas, a nuvem negra era tudo aquilo que o homem dava e não recebia. Meu Deus! O fardo que carregava era cheio de não-amor, do ego de outrém, da mão que segurava a sua para se sentir amada quando não queria amar. A nuvem negra que curvava as costas daquele homem era pó de desamor.

 

Pequenos devaneios de fim de ano

Vai ano, vem ano e os discursos desta época são sempre iguais. Cheios de  imperativos, faça isso, mude isso, seja aquilo. Já faz um tempo que descobri que nem mesmo eu tenho controle sobre os meus imperativos, quem dirá os outros.

Há alguns anos venho tentando lidar exatamente com essa falta de controle sobre a minha vida. De certo, tenho decisões a tomar todos os dias e isto, invariavelmente, me coloca as rédeas nas mãos. Porém, de sopetão – e é sempre de sopetão – algo acaba acontecendo e arrancando todas as suas raízes do chão, chacoalhando todas as suas folhas secas, te colocando para sentir o hálito quente da vida bem pertinho do seu nariz. Respira, o hálito quente da vida é o que mais te faz sentir vivo.
Eu não tenho controle sobre nada. E este texto, muito menos. Este texto sequer remete a qualquer controle espiritual. Tenho cada vez mais focado no tangível, não é fácil ser realista (mas a vida faz essas coisas com a gente). E como eu ia dizendo, eu não tenho controle sobre nada. E o dia em que você perceber isso, caro leitor (deixe-me fingir ser escritora), eu te prometo que doerá. Dói pra caralho perceber a falta de controle total e absoluta que temos perante nossos maiores acontecimentos. Seja pela ânsia da vida, pela morte, pela doença, a verdade é que os sopetões vêm como granadas. Chegam desconstruindo tudo o que conhecemos como “nosso”, chegam arrancando o ultimo fiapo de ar do peito. E dói, porque dói desconstruir. Dói ver a nossa realidade desmoronando com tudo o que tem dentro. Dói ver todos os nossos sonhos rasgados no chão, dói uma dor tão pungente imaginar um futuro – aquele que imaginamos a vida inteira – destruído. Não existe nada, não sobra nada, não tem mais praticamente nada nosso. Sobram apenas esse corpo já não tão saudável, essa mente perturbada, essa enorme falta de fé em tudo, sobra esse emocional já tão abalado. E é exatamente tudo isso que é preciso recolher do chão, caco por caco, pedaço por pedaço de fracasso, de insegurança, de medo, de tristeza profunda, de revolta. É preciso recolher todos os nossos cacos estragados.
Eu não sei como é o amanhã. Eu não sei se vai ser tempestade ou bonança. O que aprendi nesses últimos anos é que a vida é um eterno ciclo entre os dois.

Talvez você tenha pensado que este texto fosse terminar de uma maneira otimista, desculpe desapontá-lo. Eu disse que não sei como é o amanhã. Mas posso te presentear com alguns imperativos, se assim desejar. Então faça mais por você mesmo. Levante. Recolha todos os teus cacos do chão, o que sobrou de você é imprescindível para continuar. Chore quando tiver que chorar, choro engolido faz mal. Permita-se doer, mas procure as coisas leves. Procure incansavelmente a risada e aquele abraço que te acalenta. Procure as coisas que te lembram sempre quem você é e quem você foi – isso é a única coisa que sobra depois de um sopetão. E não tenha medo de doer, de fracassar, a vida é isso mesmo: um tombo, uma dança, um tombo, uma dança. Talvez a gente só precise saber incorporar os tombos de uma maneira mais leve à coreografia.

 

Que 2016 seja um tango bem bonito.

 

Anti-biótico

A falta de arte me sangra. Fugir do sóbrio de todo dia é uma necessidade que urge. Quanto mais o mundo afunda, mais eu careço de arte, mágica e coisinhas bonitas. Pequenos goles de coisinhas bonitas. Como um antibiótico, sem pular nenhuma dose. Anti-biótico nunca fez tanto sentido.

A realidade não desencanta mais, somente; ela crava suas garras afiadas e doloridas na minha pele já tão surrada. Eu jorro cinza. 

O inverno entra pelos meus poros sugando as poucas horas de luz. O sol tenta rasgar o dia, mas as nuvens são enormes soldados de chumbo que não permitem passagem. Falta-me um espectro inteiro de cores, elas não são mais vivas, as cores morrem. 

Os gansos e as andorinhas já cruzaram o oceano, permanecem aqui apenas os corvos, as gaivotas e os pombos, os robins. Invento dragões que cospem fogo. Magos que habitam castelos de areia. Cavalos encantados que correm pela neblina. Os coelhos falam. A vida que eu crio é apenas uma fábula. Uma flor que brota em pedra, um riacho que conversa, os poemas recitados pela coruja na madrugada. As pinceladas na tela crua, os versos soltos na página branca. A maneira que o bigode branco do meu gato rasga de um nariz rodado. Coisinhas bonitas. Preciso de coisinhas bonitas.