Engasgo

Sou feita de inteiros estraçalhados.
Eu não sei lidar com os meus vazios. As faltas e os excessos me consomem.
No meio, o abismo.
Limbo.

– passo a maior parte da minha vida entre os dois extremos do abismo. evito olhar para o limbo. não há como descrever um vazio sem fechar os olhos, a densidade do vácuo queima lentamente cada ponta do meu corpo, eu flutuo em queda, o ar pesado – tão cheio de nada – me suga os brônquios. expiro. eu não consigo inspirar. sufoco. tudo o que me sai, jorra, derrama, me afoga. engasgo. eu deslizo por todos os meus poros, a falta desce viscosa pela garganta.

A escuridão me cega.
Eu não sei viver nos meios.

Eu preciso de inteiros, ainda que estraçalhados.

Sobre idas e vindas

A vida é um banco de estação de trem onde, inertes, apenas observamos o ir e vir das pessoas. A nossa impotência é a falsa sensação de que podemos controlar quem vem e quem vai. Talvez selecionemos um pouco as chegadas, mas as partidas – ah, assistimos a cada uma delas amarrados e anestesiados.
Acredito que as pessoas peguem pequenas poções de encantamento uma com as outras. Cada um que cruza o seu caminho traz consigo um bocado de poções em pacotinhos. E, homeopaticamente, quem vem sempre pega um pedaço da gente. E deixa seus pedaços também. Assim é a vida, assim somos nós: um aglomerado de pedaços mal acabados de todo mundo que nos importou um dia.

Entre tantas partidas, entre tantas idas, o coração faz vista (e casca) grossa: eu já não mais te sinto ir.

(Talvez eu me engane de propósito. Foi, não faz falta, nenhum de vocês. Era tudo hábito e você, claramente, foi um não-hábito. Ou talvez um hábito facilmente desmanchável.)

Perdoa-me, mas me recuso a me culpar por partidas. Deste mal eu já não sofro mais. Não sou eu, é você.

(Talvez meu coração esteja adormecido. Talvez eu realmente já não me importe tanto. Que seja.)

Ora ou outra, sou tempestade demais. Como me desmanchar em palavras se não me permitir exacerbar cada instante? Como jorrar versos se a minha inquietude for calada por ponderação? Não sei ser brisa morna em papel. Eu vento. Eu estrago. Eu arrasto, eu varro, eu chovo todos os dias.

Obverso as partidas de mãos atadas. Voltem! Tenho mais poções de encantamento! Venha! Leve quantas quiser. Não precisa deixar as tuas, não, não se preocupe. Apenas não desencante, não desencante.
Me doo demais. Eu doo demais.

Vou repondo lentamente os meus pedaços. A cada pessoa que parte, aumento mais os meus vazios.

Talvez

Talvez você não seja tão interessante assim. Talvez a presença seja hábito. Talvez a ausência seja alívio. Talvez o tempo seja necessário.

Talvez, talvez, talvez. Talvez sempre. Talvez nunca.

Julia

Chieveley, 10 de Março de 2016.

Julia,

Demorei um pouco para escrever a carta que te prometi, eu sei. Acredito que  tenha demorado demais porque uma parte minha talvez só se dê conta da sua chegada quando olhar nos teus olhos e me desdobrar em uma longa crise de choro.

Eu moro longe, Julia. Um dia vou te levar para colocar os pés no mar comigo, apontar lá para o infinito, onde moram todos os sonhos de criança, e dizer – é lá que a tia mora, pequena. E você então me olhará com esses seus olhos grandes, talvez verdes, talvez castanhos,mas definitivamente sedentos por descobertas e me pedirá para te contar como fui morar lá atrás da onda.

Eu sempre soube que o meu primeiro arrependimento de ter partido viria quando você fosse anunciada. Eu sempre soube. Porque nesses últimos oito anos eu chorei muitas vezes em silêncio imaginando como seria duro não te ver crescer, não te ver chutar a barriga da sua mãe, não acompanhar teus primeiros passos. E eu ainda não sei se tudo isso se aquietará no meu coração um dia porque, neste momento, às 15h12 de uma quinta feira, meu coração é apenas ansiedade em te ver.

Você ainda não sabe, mas você é um sopro de esperança na minha vida também. Eu te escrevo esta carta poucos dias antes de mais uma vez ouvir alguém decidir por mim se um dia poderei ser mãe, e olha, minha querida, os últimos anos não têm sido fáceis. Entretanto, desde que você chegou, ainda que eu não possa gerar ou parir, ainda que não me deixem adotar, eu tenho uma esperança. Eu tenho uma sobrinha! Metade da minha outra metade, de quem eu cuidei e ainda cuido como se fosse um pequeno bibelot encantado. Eu sei que você já vai nascer amando tudo sobre a sua mãe, mas um dia ainda quero que aprenda cada centímetro desse amor. E quero que aprenda o amor da sua avó e se orgulhe de ser neta dela, da mesma maneira que me orgulho de ser sua filha.

Julia, eu não vejo a hora de ver o teu sorriso e o brilho assustado dos teus olhos enquanto te conto uma história. Eu não vejo a hora de te ensinar algumas coisinhas simples da vida e outras tantas de imensa importância. Um dia te mostrarei meus discos e te ensinarei a cantar Beatles e Chico. Um dia te darei os livros que eram do teu avô e te contarei algumas coisas sobre ele. Falaremos sobre os meus escritores prediletos e então você descobrirá que eu também escrevo, assim como seu avô também escrevia. Eu farei bolinhos de chuva numa tarde cinzenta com a receita da bisa e descreverei tudo sobre os lugares onde você nunca esteve. Um dia, quando passarmos de mãos dadas por uma roseira, eu te contarei um pouco sobre o biso e o quanto ele gostava de rosas, cachaça e mandioca frita.  Eu te contarei até sobre a fazenda de café, do jeitinho que ele fazia comigo, com você deitada no meu colo me pedindo pra repetir de novo e de novo e de novo.

Em pouco menos de um mês você estará nos meus braços e torço para que me espere chegar. Em pouco menos de um mês, você mudará a vida de muita gente. E eu não vejo a hora de poder te ajudar a expandir, de possibilitar que você inunde o mundo inteiro e seja grande. Que você seja uma criança alegre, cheia de vida e tenha sede de conhecimento. Que se torne uma adolescente brilhante, inteligente, sagaz, sensata, mas que saiba a hora de cruzar os limites e aproveite toda a sua juventude. Que você seja uma mulher forte, inspiradora, decidida e consciente de que a humanidade ainda tem muito a evoluir.
Essa época em que você chega anda meio sombria, Julia. A gente caminha para trás ou para frente, só o tempo poderá dizer. Mas eu te garanto que ainda existe um bocado de pessoas incríveis por aqui  e que a vida vale a pena, principalmente quando existe amor e gentileza – portanto, seja sempre gentil e amável. E, quem sabe, você tenha esse desejo louco, jovem e faminto de mudar o mundo, e que o mude, e que transcenda, e que seja um ser humano admirável.

Quanto a mim, minha pequena Julia, prometo estar contigo em todos os dias das nossas vidas, ainda que longe. Prometo ser o braço sempre aberto quando precisar de um refúgio, o colo quentinho quando precisar desabafar. Prometo ser teus conselhos e guardar todos os teus segredos. Prometo virar o mundo de cabeça pra baixo só pra te ver gargalhar. Prometo te fazer amar todos os bichos – terei sempre bichos, e desafiar a física e diminuir essa distância tola entre a gente. E terei sempre presentes e um bom e velho punhado de histórias pra te contar.

 

Com todo amor que me transborda,

 Dinda