Cinzas. Seus olhos são cinzas como duas bolinhas de gude, como dois olhos de esquilo.
Só eu sei que eles ficam verdes sob o sol e azuis pelas manhãs.
Só eu sei que eles quase somem no canto do teu rosto quando você sorri.Lá atrás dos teus olhos cinzas tem uma cascata. E eu me afogo todos os dias.
Mês: maio 2010
Não volte, por favor.
não, não volta assim, cheio dessas coisas que só você sabe me dar, não volta. você me conhece tão bem e sabe como esculpir cada pedaço quebrado do meu coração, você sabe como me fazer acreditar em todas as suas mentiras de novo, em todas essas coisas que você falava pra me ter ali. eu sei, você sabe, eu já me feri, te deixei ferir e chorei, chorei todas as águas salgadas de dentro de mim e, sabe, meu coração secou por um bocado de tempo, e eu me afundei cada vez mais na areia movediça do teu amor, do teu mal-amor, de tudo isso que você me deu, eu me afundei e cheguei lá no fundo, lá onde já não dói mais, sabe? como quando a gente morre e não sente mais nada. pois é, eu já morri de amor e cá estou. e não foi a tua mão que me levantou de lá, não, não foi a mão de ninguém, a não ser a minha asa quebrada que curou e me pôs a voar de novo, e eu saí, cara, eu saí do buraco escuro, vazio, sujo de lama, de merda, de toda essa merda que você me deu, mas eu saí. saí mais limpa do que nunca, tudo dentro de mim é vidro novo, mas ainda é vidro, ainda quebra, e você! não me venha você com esses teus dedos tortos, com toda essa vida desengonçada pra me devolver aos frangalhos de novo, porque a gente sabe, querido, a gente sempre sabe o quanto um amor é verdade. lá no fundo, no mais remoto pedaço da gente, a gente sabe. a gente sente. é químico. e o nosso não era, sabe, o nosso não é. o nosso é qualquer coisa assim de dependência, alguma droga pesada dessas que prende a gente num vale de grama verde, tão verde e florida e deixa a gente lá até inundar de água e quase matar, e daí a gente precisa daquela grama florida de novo, sei lá, você sabe bem como é. você precisa do meu desejo, eu preciso do teu. mas agora eu curei minhas asas, cara, agora meu coração é de vidro e eu tô pronta pra acreditar de novo em toda essa merda que chamam de amor, que não passa de dança de pavão, só que agora eu acredito, acredito que tenha alguém aí que talvez nunca vá, sabe. que nunca precise voltar. e que se voltar um dia, eu não tenha que dizer por favor, não volte, e não me enrole nos próprios espinhos de novo, e não morra de desejo e medo de cair no poço mais uma vez. quando é que a gente aprende a não dar as mãos pra gente como você? quando é que a gente aprende a parar de olhar nos teus olhos e acreditar?
Domingos
Domingo. Acordo cedo na parte de cima do beliche, minha irmã só levanta da parte debaixo com leite quente com Nescau. Mamãe arruma uma mala pra gente ir pro clube, faz sol e é tão bom. Vamos de parati com adesivo do cachorrinho da TKTS no vidro de trás, ouvindo qualquer música na Transamérica. O dia está perfeito e um mergulho na piscina do clube parece extremamente convidativo, depois de uma partida de vôlei com o pessoal do nosso time.
Mamãe passa Sundown 30 no meu rosto, ainda sinto o gosto. Seu Zé, traz dois guaranás aqui, por favor! Sem abelhas, mãe. Ainda me lembro de molhar os pés no lava-pés da piscina pra tirar a sujeira, morria de nojo daquela água.
Hora de ir embora, vovó liga. Entramos no carro mais uma vez e mamãe dirige até a casa da vovó. Cheiro de frango assado, domingo é típico e tem macarrão. É a nossa lei, a nossa tradição.
Vovô espera sentado na garagem, com um copo de caipirinha na mão. “Aperitivo”, diz ele. E então deixa minha mãe guardar o carro lá dentro, e a gente resmunga um pouco, porque com dois carros na garagem não dá pra jogar futebol. Vovô me leva pra ver as rosas que brotaram da roseira, o alecrim que cresce livre na horta e os limões que começam a nascer do limoeiro. Subimos no quintal que fica lá em cima e vovô colhe umas pitangas pra mim, ele sabe que eu adoro.
Antes disso havia ido ao Seasa e, como sempre, tinha comprado manga pra mim, abacate pra minha irmã. Sempre assim.
Passo pela cozinha, vovó faz nhoque caseiro. A mesa está toda enfarinhada e várias minhoquinhas de massa deitadas horizontalmente. Atacamos um nhoque cru, porque só gosto de nhoque cru. E por isso tem spaghetti pra mim, só pra mim.
Eu e minha irmã abrimos o armário da cozinha e pegamos duas xícaras de pirex marrom. A garrafa térmica de café tá quentinha, a gente aperta algumas vezes e bebe até acabar.
A TV, na sala de televisão, passa alguma coisa como “A família Dinossauro”, e vovô assiste comendo amendoins e mandioca frita. “Aperitivo”, diz ele.
Vovó grita – e me lembro tanto deste grito: “Kariiiina, Mileeena, vêm almoçar”. E nos sentamos à mesa, com nhoque e frango assado. Com vinho tinto com guaraná pra nós duas, porque é assim que é, é a nossa tradição italiana. Com frutas de sobremesa.
Mas a gente é criança e não desiste de caçar um chocolate, e abre o armário de gostosuras do vovô, e tá sempre cheio, porque ele sabia que a gente viria. Bis.
Vovô e vovó sobem para uma cochilada depois do almoço. Mamãe lava louça, eu e Karina brigamos pra ver quem guarda, porque é melhor que enxugar. As panelas no armário de ferro, o que a gente não alcança deixa em cima da mesa.
Subimos no escritório do vovô, que tinha a escrivaninha dos anos 30, que hoje é minha e me lembra tanto ele. Tem muitos livros nossos ali. Pegamos alguns e descemos pra sala de TV, pra assistir qualquer coisa dessas da sessão da tarde.
Depois que vovô e vovó acordam, podemos andar de bicicleta no quarteirão. Mais tarde vovô vai fazer pizza e a gente volta pra casa. Tem que dormir cedo, amanhã tem escola, mamãe trabalha. “Deus ajuda quem cedo madruga”, vovó repetiria inúmeras vezes.
Que saudade que eu tenho disso.
Se eu pudesse, ao menos uma vez, ter outro domingo desses na minha vida. :S
Ojala pudiera borrarte
Ojala y te me borraras de mis sueños. Ojala y se me olvidara hasta tu nombre.
Maná, por uma vida mais doce.
Foi
Foi. Já era pra ter ido há muito tempo, pensou ela, enquanto lia um pouco de Saramago.
Agora sim, agora sente a leveza bruta e forçada no coração. Conseguiu expurgá-lo com muita custa. Hoje já não dói mais nada. Pouca coisa permanece, talvez um pouco lá no fundo, mas o que precisava já chegou. Qualquer coisa que ajudasse a dar qualquer passo para frente sem pensar no porque, no que, no como.
Leu em voz alta um trecho de A Jangada de Pedra, segurando a ponta da página entre os dedos: “o pensamento tornou-se poético, o perigo já lá vai”.
Virou a página com tanta serenidade, que vi nela um ar de quem vira uma página da vida e começa tudo outra vez.
A caixinha de música
Um dia eu abri uma caixinha de música. A bailarina saltou pra fora, a melodia ecoou por todos os meus sentidos e de repente eu precisei daquela música, daquela bailarina, precisei mais do que eu queria, mais do que podia ou devia. A caixinha, eu, a bailarina, a música, horas, dias, meses. Tinha um lugar especial, a caixinha de encanto.
Até que um dia você se quebrou. (E eu ainda não consegui te consertar).
Declaração
Um dia eu cheguei em casa e contei pra minha mãe que estava apaixonada por Clarice. E dizia, me lembro bem, mãe, impressionante o quanto ela me entende.
Porque eu sempre fui assim, sabe, de ter que sentir rasgar a pele e cutucar a carne. Não sou de meia palavra, de não-me-toque, de sutileza. Sou do tipo que pinga o sangue em gotas pra dizer que ama. Preciso sentir, preciso sentir, preciso sentir. E se pra sentir há de doer, que me doa por inteiro, que eu seja eternamente dolorida e sentida em mim, no mais fundo de mim. Dolorida, colorida. É que eu acredito em pessoas cheias, em palavras atiradas no peito, em sentimentos escarrados. E Clarice, pra mim, me entendia.
Até o dia em que um outro cara surgiu na minha vida. Caio Fernando Abreu. E foi nele que me perdi completamente, porque se Clarice me entendia, Caio é eu. Caio é meu Id. Ele me entende, me lê, me expressa, fala de mim. Não há palavras que saiam de Caio que não possam envolver algum pedaço meu.
E tem mais um trilhão de autores. A gente cita Bukowski, Kerouac, a gente cita Saint-Exupéry e Nelson Rodrigues. Sempre tem alguém que já disse aquilo que a gente tá sentindo. Mas quando você acha um autor que te lê, mais do que você lê a ele, isso sim, meu amigo, isso sim é que é bonito.
Que me rasgue o peito, que me cutuque a ferida aberta sangrando em carne-viva, que me doa sempre lá no mais fundo de mim, Caio Fernando.
Breu
– Espia, espia só. – disse ele, enquanto estendia as mãos em formato de concha na minha direção. Era tarde da noite, era interior de Minas Gerais e eu tinha certeza de que havia dormido, mas de repente me encontrava ali, no meio do mato, com aquele gurizinho pardo me estendendo as mãos em concha.
– Vai, espia só! Não machuca! – ele insistiu.
Foi então que me passou as mãos, como naquelas brincadeiras de passa anel, e me entregou o que quer que tenha sido. Não sabia o que sentir, afinal de contas, nem deveria estar acordada. Olhava em minha volta e só tinha um mato desses ralos, muitas flores, as montanhas em volta, tudo devidamente clareado pela lua cheia amarela, tão amarela que parecia fictícia. Os olhos de jabuticaba do guri pardo refletiam a lua e ficavam amarelos também, assim como seu sorriso de dentes tortos e avantajados. Pés sujos, roupas rasgadas. Pensei que fosse índio, ou pelo menos descendente, tinha os olhos de jabuticaba puxados e nariz de negro. Como chamavam mesmo? Aprendi na escola e achei que nunca falaria essa palavra um dia: cafuzo. Confusa. Que diabos estava eu fazendo naquele breu iluminado por uma lua amarela, com um cafuzinho me passando anel?
Insistiu que eu abrisse uma brechinha só da minha mão. Não sentia nada dentro delas, nem cócegas. Também não tinha medo. Os olhos do menino brilhavam como se aquilo fosse coisa especial, não coisa de dar medo.
Abri uma brecha entre os dedos e olhei por eles. Não vi nada.
– Se tu não acreditar, não vai ver mesmo. Tem que ter fé na escuridão.
Aquelas palavras ecoavam na minha mente de uma forma muito louca, será que eu tinha bebido? Será que eu estava dopada, ou era tudo um sonho? Eu tinha que ter fé na escuridão e isso me fazia muito sentido, mas aquele cenário todo? E foi então que eu encontrei o momento, porque a gente sempre encontra o momento em que deve deixar de relutar e apenas ir sendo com as coisas, e deixar as coisas acontecerem. E foi nesse momento, quando ele me pediu pra ter fé na escuridão, que eu me deixei ir e parei de questionar. Já não importava mais o porque de estar ali, já não importavam mais os meios. Desisti de entender e fechei os olhos. Senti o cheiro de mato da noite, uma leve brisa de dama-da-noite soprava de algum lugar. O guri pardo cheirava a terra, terra molhada, como se tivesse brotado dali naquele instante. Ele sorria o sorriso mais lindo que tinha pra me dar, e eu – eu não tinha percebido, mas mesmo com a lua amarela, podia-se ver um milhão de estrelas. E por alguns instantes ficamos ali, eu e o guri, agachados e olhando e céu. Eu com a mão fechada em concha, guardando a mais preciosa coisa que não sabia.
E então ele me olhou de novo, desta vez sereno, com um sorriso leve e um olhar cheio.
– Agora é a hora. Vai. Acredita.
E eu então abri a mão bem devagarinho e, no começo, não havia nada. Depois foi surgindo um raio de luz verde, quase falha, relutante. E foi só quando abri a mão por inteiro que a luz se acendeu. Tão forte, perto daquele breu. Uma luz verde dessas raras, sabe. E eu não mais me perguntei o que havia de ser, pois que não havia mais sentido pra nada. Eu segurava a luz do mundo e era simples assim.
Foi só quando a luz voou da minha mão e sumiu no breu do mato que o menino se levantou. Segurou meus ombros com mãos pesadas de quem já viveu por demais e me disse:
– A luz só existe pra quem acredita na escuridão. Se tu não aceitar que tá escuro, como é que vai enxergar a luz?
Então ele se levantou, o menino pardo de sorriso torto e olho de lua amarela. Saiu caminhando por entre o mato e por cada fiapo de mato que ele passava, milhares de luzinhas subiam pro ar. Foi a cena mais linda que já na vida.
– E então? Vai ficar aí plantada feito mandioca, ou vai querer encontrar mais luz?
Eu não hesitei por um segundo, era muito óbvio, era muito simples. Estava escuro, e eu tinha que encontrar mais luz.