Guerreira de barco

Que talvez o que te prende é um passado que, de repente, não existe mais.
Que as pessoas mudam, ora pra melhor, ora pra pior.
Que o amor não acaba, mas se transforma.
Que para sempre não existe.
Que talvez tenha sido mesmo sempre você a insistir em tudo em isso.
Que talvez tenha sido mesmo sempre você a acreditar em contos de fada.
E contos de fada não existem.
Enxuga essas lágrimas, engole todo esse vazio. Chega de remar contra a maré, é hora de deixar a correnteza levar, é hora de deixar a vida manifestar suas vontades. Passe pro banco de trás, menina, você não controla mais esse barco.

E isso não é fracasso. Isso é amor próprio.

 

***

Continuará tentando, espera sempre o melhor de tudo. É uma guerreira sem estratégia nenhuma, conta apenas com essa esperança triste de que os outros continuem remando também.

A voz abafada de dentro

Parado no meio da rua, ele segurou suas duas mãos com todo o cuidado do mundo e sussurrou baixinho, não quero que você vá. Mas lá dentro dele, seu coração queria gritar tudo isso e fazer com que as pessoas que caminhavam por lá parassem, olhassem e entendessem, como um pedido de socorro, como se alguém no meio da multidão pudesse tirá-lo dessa angústia, chamem a ambulância, os bombeiros, socorro, socorro, socorro, camisa de força, amarrem-na, pelo amor de deus, amarrem-na, façam com que ela nunca mais vá embora!

Ela então beijou-lhe o rosto e disse que se apenas ele fosse menos frio, se soubesse dizer mais o que se passava por dentro, talvez ela não precisasse ir embora. E mais uma vez ele calou-se, com as unhas rasgando o avesso do coração, com a voz abafada de dentro gritando, implorando, pedindo. Ele simplesmente não sabia. E ela se foi, mais uma vez. Talvez para sempre.

Liberta

Liberdade de sentimentos é a única liberdade real. Somente quando nos despimos de sentimentos mesquinhos e estagnados é que podemos nos considerar livres.
O grande truque dessa liberdade é que às vezes ela te ilude, fazendo acreditar que está livre do que te prendia e, ao menor sinal de tropeço, ela te entrega todos os sentimentos de volta, enfeitados com lâminas afiadas e espinhos pontudos.
Há de se desprender do que te segura, há de se chacoalhar e deixar o que é morto cair.
Porque de nada adianta a liberdade se ainda somos escravos da nossa mente e do nosso coração. Eles é que são os grandes aliados e inimigos de qualquer pessoa livre.

Cinco de Janeiro

Cinco de Janeiro sempre foi uma data especial pra mim. Por tantos anos estive na praia nessa época, por tantos anos o Reveillon foi quase que extendido até o quinto dia do ano. Era festa. Era dia de sair, onde quer que estivessemos, para comprar bolo e velas. Era seu aniversário, vô.
E até hoje você continua sendo para mim a pessoa que mais celebrou tudo. O dia simples, a mediocridade, as datas especiais, o nascer do sol, o canto do sabiá, a vida. Você sempre foi meu maior exemplo de carpe diem.
Oito anos se passaram muito rápido, vô. E posso jurar que senti sua falta em cada dia deles. Quantas vezes quis pegar o telefone e ligar pro número que ainda sei de cor, só para te contar como estou, o que tenho feito, só pra dizer, vô, olha, eu tô com 30 anos, é a vecchiaia! E você sabe que fiz isso uma vez. E me disseram que o número não existia e eu chorei, meu Deus, como eu chorei. Foi como se tentassem apagar um pedaço de mim.
Tanta falta cabe ainda dentro de mim, e ainda espero o tal do tempo que dizem curar tudo. Porque não cura. Não cura o meu egoísmo humano de ter desejado que você fosse imortal, que vivesse para sempre. Não cura essas lágrimas que escorrem dos meus olhos sempre que penso em você com um pouco mais de profundidade. Perder dois pais foi difícil demais pra mim, vô.
Às vezes me lembro de coisas tolas, da gente junto. Me lembro de você, quase sem enxergar, indo ao meu trabalho me visitar no meio da tarde. Você me deixava com o coração na mão e eu tinha que te observar da porta da rua até que virasse a esquina, rezando para que nenhum carro te machucasse no caminho. E quando eu me oferecia pra caminhar com você de volta, você ficava bravo, ninguém era capaz de ousar sua liberdade.
E então comecei a usar meu horário de almoço para ir à feira com você, te ajudar a escolher as frutas e as notas de dinheiro certas, sem que ninguém abusasse da sua condição. Te levava para casa e almoçava com você e a vovó, meu Deus, como tenho saudades disso.
Nunca vou me esquecer de um dia em que caminhava de volta da feira com você, e meus olhos escorriam. Você não percebeu, pois mal conseguia enxergar, mas, naquele instante, eu pensava no quanto sentiria falta de momentos como aquele. E me lembro de pensar que um dia voltaria mentalmente àquele momento tão mágico, e quis eternizá-lo em mim, e consegui, vô.
Cada pedaço da minha vida dividida com você foi um pouco de magia. Das tardes deitada no seu colo, escutando as histórias da sua infância. Das noites em que dividíamos o quarto do tio Zé, você na cama perto da janela, pra me proteger dos monstros voadores. Dos filmes de bang-bang na tv, que eu mal entendia, mas adorava assistir em preto e branco. Do jeito que pensava em mim sempre que comprava ou ganhava qualquer coisa. Da simplicidade de momentos divididos pescando ou debaixo de pés de pitanga e abacateiros.
Queria por mais uma vez sentir seus dedos calejados entrelaçado aos meus, do jeito que me dava a mão e não dizíamos nada. Queria por mais uma vez ver seu sorriso, sentir essa alegria mais pura que já conheci na minha vida. Ainda te vejo em mim e te verei eternamente e, quem sabe um dia, ainda nos encontraremos de novo e você me contará mais algumas histórias sobre a fazenda de café onde viveu. Quem sabe um dia conseguirei ouvir dentro de mim a sua voz de novo. Esquecer lentamente a sua voz, isso é o que mais me dói.
Feliz aniversário, vô.