Embaixo das cerejeiras

Eu comecei uma página em branco quando debrucei sobre a tua janela e, com as mãos em concha, decidi mudar completamente. Eu comecei uma história inteira dentro dos seus 250 anos de chãos tortos e vigas de madeira. Minhas coisas, pouco a pouco, te pertenceram e eu fui tão feliz com as tuas corujas, os galos da madrugada e as ovelhas da esquina. Eu fui tão feliz cozinhando o quea tua terra me dava.

Você foi uma pequena epifania na minha vida, chalé lilás, que de lilás só tem as flores da lavanda que crescem aos seus pés.

Embaixo das tuas cerejeiras eu contemplei teus céus, terminei alguns livros e tracei muitos planos. Na frente do campo de trigo eu me resgatei incontáveis vezes. Eu te colhi e te cuidei. Você me deu sustentabilidade, as estrelas mais bonitas e o arco de gelo em volta da lua. Você me deu o dia mais bonito com dezenas de balões coloridos no céu, aumentando o fogo para cortarem o arco-íris. Você me deu a maior quantidade de arco-íris que já vi. E também marmelos, para que eu fizesse marmelada pela primeira vez. Você me abraçou com esse teu jeito bucólico e me encheu de espírito. Meus bichos nunca foram felizes assim em nenhum outro lugar.

Meu coração aperta quando penso que tenho tão poucos dias, mas não posso mais ficar. Você sabe, bem como eu, que a vida se desfez um pouco neste chão torto. Foi aqui, onde meus melhores sonhos se construíram e caíram como um castelo de areia. Você sabe que eu, que sempre renasci pelas tuas janelas, morri um bocado nos teus cantos. Eu não posso mais ficar. 

Um dia eu volto, chalé lilás. Com o coração um pouco endurecido e os olhos vendados evitando memórias. Com um nó seco na garganta que hoje ainda se umedece em lágrimas. 

Eu tenho essa mania quase infantil de me apegar aos lugares onde estive, mas na verdade eu me apego às memórias que eles constroem. É esse meu lirismo incorrigível quem denota sentimentos às paredes e um quê de vida aos tijolos. Sentirei tanto a falta do sol entrando pelas suas janelas. Sentirei tanta falta deste pequeno vilarejo, dos teus barulhos, dos campos e dos sorrisos. Obrigada por ter sido meu último e mais bonito capítulo. E cuida bem das minhas coelhas. 

Ao menos a vida me promete mais uma vez um pouco de encanto. Parto então do chalé lilás para o morro dos morangos. E é bem ali onde escreverei talvez a parte mais importante da minha história.

Aqui não termina um capítulo; se encerra um livro e se começa outro. 

Desejem-me sorte.