Às vezes eu subestimo um pouco o que eu sinto por você, sabe. Talvez por terem se passado tantos anos entre a gente, talvez por termos uma história tão comprida. Eu te absorvo como sendo parte da minha vida, do meu dia a dia, e esqueço o quanto tudo isso é uma escolha, o quanto toda vez que acordamos, confirmamos um “sim, é aqui o meu lugar, é você”.
A gente deita no sofá no sábado à tarde a assiste a qualquer desses filmes na tv, bebendo cerveja. Você segura a minha mão e fala alguma coisa só pra me fazer rir. A gente cozinha juntos, a gente faz tudo juntos. E se eu estou meio doente, você me cuida. Faz chá pra mim. E é bem nessa hora que eu reconheço.Eu adormeci no sofá e você chegou quietinho com um cobertor para me cobrir. Achou que eu estava dormindo, mas eu vi tudo de olhos fechados. You tucking me in, como naquela música, I´ll be the one to tuck you in at night. E é aí, bem aí, bem quando que te pego de surpresa, me olhando na cama enquanto o dia amanhece, procurando minha mão no meio do sono, é bem aí que eu reconheço o que é o amor real. Todo o resto é pura ilusão. Porque se um dia alguém disse uma verdade absoluta, é esta aqui: quem ama cuida. Mesmo. De verdade.
Sim, aqui é o meu lugar. E é você quem me cuida. E eu te amo tanto que dói.
Categoria: Complicada e perfeitinha
Sobre mim!
A viagem do tatu-bola
Eu para ele, agorinha mesmo:
– Babe, tem um tatu-bola cruzando a sala como se cruzasse o mundo… desde que eu cheguei. Ele tava na porta da cozinha e agora tá aqui no meio, olha lá.
– Faz quanto tempo?
– Uns quinze minutos… e ele só chegou na metade da sala.
Os dois sentam no sofá e observam as pequenas conquistas do tatu-bola.
– E se eu pegá-lo e colocá-lo lá na porta da cozinha de novo?
– Hahaha que malvado… Ih, olha ele parou. Deve estar exausto.
– Você tem Gatorade?
– Não, tenho Red Bull, pega lá. Aproveita e rasga um pedacinho de guardanapo, ele deve tá todo suado.
– Tá, vou cortar um outro pedaço pra fazer uma faixa de chegada.
– Boa, vou pegar a vuvuzela.
Update: o tatu chegou no fim do mundo da sala. Nós comemoramos.
Eu amo esses nossos momentos. Hahahahaha.
Pronome improvável
É que eu te machuco, te faço doer lá onde ninguém é capaz de tocar. E eu sou peso, fardo, me carrega com todas as coisas que mais ama em mim e uma tonelada de intensidade cuspida. Sem saber a hora, sem prever o fim. Drama. Sou escrita, sou palavra corrida, sou letras escondidas, entrelinhas. Sou cheia de calos nos dedos e superlativos. Mastigo-te em vírgulas, engulo-te em advérbios, embaixo, dentro, às pressas. Que não seja em vão.
Derramo-me nas suas mãos em verbos e jogo em você o peso de um pronome improvável. É que te encontro no fundo da minha parte de dentro, feito uma pedra que lapidei cuidadosamente com pedaços de ilusão e realidade inventada. Então escuta as minhas orações e toca na minha ilusão, meu ideal de amor esculpido, onde ninguém é capaz de chegar. Aprenda a me ler e ensina a tua vida em pronome comitativo, comigo.E chega mais perto, não bata a porta, deita do meu lado e inventa pra gente o futuro de um pretérito mais que perfeito.
Knight
Primeira manhã acordando na casa nova. Alugada, sim, mas com um gostinho especial de “minha”, de vida nova, de lar, de – quem sabe – uma definitiva adaptação. Uma vez me disseram que era preciso quatro anos para se adaptar à Inglaterra, e hoje eu tenho absoluta certeza disso. Quatro longos anos, que por vezes me deram todos os motivos do mundo para desistir, e como em um passe de mágica, abre todos os caminhos de uma só vez.
A casa nova é um apartamento térreo. E tem tudo que eu sempre sonhei em ter aqui. Um pequeno jardim só meu, onde eu possa colocar uma mesa e o meu telescópio. Um quartinho extra, pra quando alguém quiser me visitar. Chuveiro e banheira ocupando o mesmo lugar no espaço. Uma pia onde caibam as duas mãos do meu marido ao mesmo tempo.
Acordar aqui hoje foi uma experiência diferente. Sentar no jardim debaixo de um pé de ameixas, bebericando meu café me dá uma profunda sensação de que, finalmente, a Inglaterra é home, sweet home.
Obrigada, ilha. Por me acolher da forma mais selvagem e dolorosa que já fui acolhida, e da mais especial também. Depois de todos esses anos, sinto sua espada passando pelos meus ombros e minha cabeça. Depois da batalha, me sinto knighted, como uma verdadeira guerreira das suas terras.
Sobre presuntos
Marido fica me testando com as siglas de times de futebol do Reino Unido. Os times maiores eu conheço todos, mas quando chega um time que eu nunca vi na vida, eu ralo pra descobrir. Fica lá no placar: ARS x WBA. E ele me perguntando, e aí, e aí. West Bromwich Albion é a resposta certa. Só conheço como Westbrom, como é que eu vou saber que tem nome completo!
Daí esses dias ele veio com uma:
– Babe, vamos lá: WHU x HEA.
– Ok. WHU é Westham…. United.
– Boa. E o HEA?
– Hummm… Heaton? Heaston? Heatwich Albion?
– Não inventa. Hahaha.
– Ham of the East?
– HAHAHAHAHAHAHAHA.
Acabou a conversa, óbvio. Se Westham pode ser o presunto do oeste, HEA pode ser o presunto do leste, ora bolas. (Choquem-se, HEA é HEARTS. O meu é bem mais legal…)
Feliz 90 anos, Guaraná Antarctica
É muito claro o quanto a minha infância foi significante na minha vida, tanto quanto a importância dos meus avós pra mim. Desde que meu pai faleceu, minha mãe teve que trabalhar em dois empregos para poder tocar a nossa vida e muitos dos meus dias foram na casa dos meus avós.
Na frente da casa deles existiam três árvores, as três plantadas pelo meu avô e carinhosamente apelidadas de três marias. Atrás das árvores, onde hoje é o centro Britânico, ficava o depósito da Antarctica.
A minha infância inteirinha foi recheada por uma fantasia mágica em torno da minha bebida preferida, o guaraná. Nunca fui uma criança viciada em Coca-Cola, minha primeira opção sempre foi guaraná e, caso não tivesse, minha escolha ficaria entre Fanta, Crush, Gini ou Seven Up (as últimas três, para os mais velhos).
O depósito da Antarctica na frente da casa dos meus avós era como a fábrica de chocolates do Willy Wonka. Na verdade, acho que era só um estacionamento de caminhões, mas para mim, devia ser o lugar mais feliz do mundo. E como deveria ser bonito trabalhar todo dia num lugar cheio de guaraná. Todos os dias eu via os motoristas subindo e descendo daqueles caminhões cheios de refrigerante. E o mais mágico de tudo isso é que eu nunca pude entrar lá dentro, só conseguia espiar pelos portões um monte de caminhões e paredes cinzas, que meus olhos tratavam de transformar em um planeta mágico e colorido.
Ainda me lembro de me chocar quando descobri que o logo da Antarctica eram dois pinguins, e não a cabeça de um dinossauro vermelho parecido com o Horácio, da turma da Mônica. Sempre vi dois olhos nos pinguins (criança pancada vira publicitária, não tem jeito).
Também não vou discorrer aqui que, apesar da Antarctica ter feito parte de um universo mágico da minha infância, meu guaraná preferido era Brahma, de garrafinha marrom de vidro. E eu transferi toda essa magia da Antarctica para o dia em que meu tio foi trabalhar na Brahma de Fortaleza. Meu tio era o cara mais foda do mundo, porque – na minha concepção de criança – ele fazia o guaraná mais foda do mundo (claro que ele não fazia guaraná).
Na verdade, tudo isso foi pra mostrar pra vocês a coisa linda que a DM9DDB fez este mês: republicar o primeiro anúncio do guaraná Antarctica, que completa 90 anos. O depósito, ou estacionamento da Antarctica, não existe lá há muito tempo e, pra ser bem sincera com vocês, eu acho que eles só transportavam cerveja. Mas a minha infância foi marcada pelo mundo que eu criei em torno de uma marca e, por isso, eu queria homenagear a Antarctica de alguma forma, agradecendo-lhe por ter sido uma dessas purpurininhas da minha vida de menina. Um simples depósito na rua Tucambira fazia meu mundo de criança um lugar muito mais interessante.
Parabéns, Guaraná Antarctica. E obrigada pela companhia nos últimos 31 anos (mesmo aqui na Inglaterra).
Minha fuga
Às vezes a vida prega umas peças na gente. Talvez nem sejam problemas tão grandes quando se resolverem, mas o processo todo é desgastante. Como se algo estivesse te torcendo feito roupa lavada, até espremer as últimas gotas de fé e esperança. E daí dá muita vontade de desistir, largar tudo, dizer um foda-se bem alto e brincar na rua. Tomar um toddy gelado. Correr pro colo da sua mãe.
Nessas horas tenho saudade da casa dos meus avós. Se acontecia algum problema ali dentro, eu nunca vi. Ou abstraí, não era tarefa minha me preocupar com nada além de fazer montinhos de recheio de bolacha. A casa dos meus avós era sagrada e livre de problemas. Lá só se jogava bola, peteca, stop. Lá era onde eu guardava meus brinquedos, meus livros e minha bicicleta. O som era a risada do pica-pau, misturada com a do meu avô que o assistia comendo amendoins japoneses. O cheiro era de bolinho de chuva. A espera era a melhor do mundo: minha mãe voltar do trabalho e me levar pra casa.
Em dias tão atribulados assim, fecho os olhos e sinto o cheiro de lá. Chego a escutar minha avó me chamando da cozinha pra jantar. Chego até a escutar as gargalhadas do meu avô. Se eu fechar bem os olhos, posso até sentir a mão de cada um deles segurando as minhas. E então tudo se acalma.
A casa dos meus avós ainda mora dentro de mim.
Pensamentos chuvosos
~ O bom de deixar algumas coisas escaparem de uma mão é que você começa a prestar atenção no que a outra guarda.
~ Nada morre sem deixar brotar algo novo. Ainda que esse novo seja algo antigo.
~ E se não possuímos absolutamente nada nessa vida, não adianta dizer que o que é seu volta. O que é verdadeiro, isso sim, nunca se vai por completo.

