Sentido

Caminho pelas ruas do interior da Inglaterra, faz frio, muito frio, e ainda não amanheceu. Não são sete da manhã e os primeiros raios de sol surgem incrivelmente vermelhos em um horizonte plano, plano como uma ilha sem saída. Os acordes de Robby Krieger alucinam meus ouvidos e eu apenas observo meus pés entre folhas e orvalho congelados. Olha por onde andam esses meus pés.
E essas pessoas que cruzam meu caminho, terão elas corrido atrás do que realmente queriam na vida? Teriam elas segurado seus desejos nas pontas dos dedos e deixado escorrer? Rostos tristes de quem nega a vida, de quem não corre atrás, rostos tristes de quem desiste antes de tentar. Seriam elas do tipo de pessoas que brilham os olhos para o que querem, mas se mediocrizam atrás da culpa do não merecimento? Não posso, não devo, não olhe mais para isso, continue caminhando, é fácil demais para ser felicidade. Um dia te ensinaram que é preciso sofrer para merecer a felicidade e vou te dizer uma coisa: essa é a maior mentira que já te contaram. Ser feliz é fazer sentido da vida, ser feliz é sentir vida.
Talvez eu faça parte de uma pequena fatia da humanidade que não tem medo de arriscar, de virar a mesa e mudar o que incomoda. E a minha falta de medo é o que mais amedronta. Sou feita de coragem e um milhão de receios, sou exatamente igual a todo mundo. A diferença entre mim e você é que não sei parar. Não sei me acostumar, acomodar me anula. E eu não aprendi a olhar o que me brilha e não seguir, não aprendi a fugir de mim mesma. Muito pelo contrário, eu fujo cada vez mais para dentro.
Não sei que parte da vida você perdeu dizendo não, não sei o quanto de vida ainda perderá. Mas de que vale estar vivo se não puder fazer o que realmente importa? Qual é o sentido de tudo isso à sua volta, se você não tem coragem de correr atrás do que quer?
Mude.
Corra riscos. Ninguém chega a lugar nenhum sem arriscar. O máximo que pode te acontecer é viver.

 

Corre, que os dias escorrem líquidos pelos dedos. A vida não espera, nenhum nascer do sol é igual a outro. A mediocridade pode até ser parte presente, mas não deveria nunca ser o sentido da sua existência.

 

If you do it, it will be something. If you don´t do it, it will never be anything.

“I really enjoyed our conversation”

Noite gelada de dois graus negativos, eu caminhei até o ponto de ônibus depois de um café com um amigo na Starbucks. O painel dizia que o ônibus só chegaria em uma hora, tempo que me pareceu extremamente longo debaixo de uma temperatura dessas. Hesitei esperar, me sentei e procurei dinheiro na minha carteira que fosse suficiente pra um táxi. Estava tendo um dia de merda, dane-se pagar um táxi pra casa, eu trabalho e o frio não compensa.
Nem me dei conta de que havia outra pessoa sentada no ponto de ônibus também, coisas da vida, às vezes estamos cegos demais para olhar a um palmo. Só percebi que alguém estava ao meu lado quando ouvi:
– Você foi esperta com o frio, colocou botas longas. Muito bonitas, as suas botas.
Eu então me virei para o lado e lá estava um senhor negro, vestindo um sobretudo e sapatos sem meia. Não aparentava ter muito dinheiro, mas também não era mendigo, era apenas alguém esperando um ônibus como eu. Agradeci o elogio e falamos um pouco do frio, como todo começo de conversa na Inglaterra.
Quando me dei conta, eu já havia mudado dois bancos para o lado dele e estávamos falando de economia, guerras e história política. Algo nele me encantava, qualquer assunto que eu trazia ele dominava completamente. Falava como um professor. Foi então que me contou que veio da Somália para a Inglaterra há 32 anos para fazer MBA em Agricultura na Universidade de Reading. Viveu dois anos na Suécia e voltou para Reading para um PhD, hoje em dia ele é Professor independente, ou particular, como chamam no Brasil.
A cada desfecho de conversa meu sorriso se transformava, ele me emanou uma paz que eu não sentia há muito tempo. Uma conversa que eu não tinha há muito tempo. O frio já não era tão presente, eu perdi meu gorro no meio do caminho e só o percebi na calçada do outro lado da rua meia hora depois. O táxi não fazia mais sentido. Aquela conversa, aquele senhor africano, aquele momento, aquilo tudo era vida para mim.
Esperamos o ônibus por uma hora e, como nada parece acaso, ele esperava exatamente o mesmo ônibus que eu.
Entramos juntos e nos sentamos lado a lado, a conversa tinha que continuar. Eu podia me ver ali, conversando sorrindo com alguém, como há muito tempo não fazia. Eu senti meus olhos brilharem.
O ponto dele era pouco antes do meu. Antes de descer do ônibus me disse:
– Muito prazer, Milena. “I really enjoyed our conversation”. Te desejo uma boa vida, porque você é uma boa menina.
Eu agradeci, desejei-lhe uma boa vida também e foi somente quando ele se levantou que percebi que era deficiente físico. Não tinha o braço direito e andava torto. Desceu do ônibus e me acenou da calçada até continuarmos a jornada.
Eu não consegui esconder o leve sorriso no rosto, a sensação de ter conhecido uma pessoa especial, o orgulho que tenho de mim  mesma quando não faço o que a maioria das pessoas faz: cortar conversas com estranhos. Me senti abençoada pela vida por ter tido a oportunidade de dividir uma hora de frio com um ser humano tão único. Por ter aceitado um elogio às minhas botas, por ter escolhido ficar, ao invés de procurar um táxi.
Foi então que percebi como aquele acaso não parecia acaso. A frase “eu realmente gostei da nossa conversa” me causou um frio no estômago na hora. Essa frase é uma das principais de um filme que eu adoro, “O Último Samurai”. Assisti ao filme essa semana novamente e ela sempre fica presa em mim, pois vem do diálogo entre um líder samurai Japonês e seu prisioneiro, o capitão do exército Americano. O samurai diz querer ter ” conversas” para conhecer melhor seu inimigo, mas no contexto e decorrer do filme você percebe que seu único interesse e fascínio é o ser humano. E quando o senhor africano me disse a mesma frase, com exatamente a mesma estrutura, senti um arrepio na espinha. Como se a vida estivesse me dando de presente um pouco de entendimento, de abrangência, um pouco daquilo que é uma das minhas maiores paixões e eu talvez tenha perdido na frieza da Europa: as pessoas.
Eu não sei se algum dia verei o Senhor Jamal de novo. Se querem mesmo minha opinião, não sei de certo se ele era real. Voltei quinze anos na minha vida, para as páginas de um livro que diziam sobre a sincronicidade e a aparição de “anjos” em determinados momentos nossos. O senhor africano era tudo o que eu precisava naquela hora. A nossa conversa me encheu de paz, sabedoria, felicidade, orgulho e humildade. O que ele me disse ontem, no fim de um dia tão complicado, foi imprescindível. Que eu tenha uma boa vida, porque sou uma boa menina. E se nunca mais nos virmos, Senhor Jamal, I have really enjoyed our conversation. O ser humano ainda é uma das minhas maiores paixões e fascínios.

Ele foi meu maior significado de vida

A vida, para ele, era algo muito simples, uma folha seca recolhida em algum lugar especial e guardada dentro de um livro. A vida, para ele, morava nos pequenos detalhes, nos menores gestos, nos maiores sorrisos. Ele sabia, melhor do que ninguém, a como colocar em prática a felicidade.
Não havia tempo ruim, não existiam dificuldades, por piores que fossem. O que mais lhe importava era o quanto poderia fazer sorrir assim que o sol nascesse. Alegria.
Alegria era pescar na praia, pingado de padaria, mandioca frita. Alegria era bloco de carnaval na rua e banda de palhaço. Alegria era contar piada o dia inteiro e rir de desenhos animados com a gente. Alegria era deitar no seu colo pra assistir filme de bang-bang antes de dormir. Ele fazia a melhor pizza do mundo, ele me ensinou que as rosas falavam. Ele me mostrou o quanto as rugas vão aumentando com o tempo, entre os dedos grossos que entrelaçavam as minhas mãos todos os dias nas poltronas lado a lado. Ele me ensinou que todo mundo é amigo, até que nos provem o contrário. Ele era a vida mais natural que eu já conheci, ele era a chácara da USP, as galinhas correndo no campo, ele era meu abacateiro e minha pitangueira. Ele era a visita certa de todo fim de tarde, a que trazia  mangas de presente, porque sempre soube que eu gostava de manga. Ele era os pequenos detalhes, o caldo da cana, o radinho de pilha. O meu colo no sofá de casa contando as minhas melhores histórias, meus contos de fada reais.
Era com ele que eu dividia o quarto quando dormia em sua casa, e ele era meu maior herói e me protegeria dos monstros que entrariam pela janela. Foram pra ele todos os meus presentes feitos na escola, todo o meu amor de filha.
Era ele quem me chamava de Mizinha e virava o mundo de cabeça pra baixo por mim. Era ele quem me visitava no trabalho à tarde, e ninguém reclamava disso, porque era lindo receber uma visita assim no trabalho. Era com ele que eu almoçava toda quinta-feira e todo domingo, era dele que eu cuidava quando começou a ficar doente.
Foi ele quem disse antes de partir para não chorar, porque a vida é assim mesmo. Não chora, Mi. Não chora agora.
Ele foi minha maior alegria, meu melhor amigo, meu maior significado de vida. Ele foi minha maior dor, minha maior perda.
E até hoje me lembro de pequenos momentos, flashbacks que cruzam minha mente quase todos os dias. como se a minha mente tentasse encaixá-lo na minha realidade ainda. E é pra ele que eu ainda olho todos os dias antes de dormir, no pequeno porta-retrato ao lado da minha coisa.
Vô, olha quanta vida eu tenho vivido do jeito que você me ensinou.  Olha quanta coisa aconteceu e você não estava comigo. Nove anos sem você e as lágrimas parecem que nunca vão cessar. A saudade boa, o tempo trouxe. A falta que você me faz nunca será curada.

Feliz 05 de Janeiro, vozão. Era dia de comprarmos bolo pra você na praia. Feliz 98 anos, onde quer que você esteja.

Te amo absurdamente.
Mizinha

 

E que o sol de Janeiro não te deixe esquecer

Que nem sempre o melhor é virar a página, às vezes é preciso trocar de livro.
Que para deixar de beber o café requentado, frio e amargo é necessário esvaziar a xícara.
Que existe um jardim inteiro cheio de possibilidades, mas é preciso que coloques o pé para fora.
Que nem sempre o que vinga ou não vinga é amor. Mas o que brota, este sim, é essência dele.

Brilha, coração. Brilha o sol do peito.

Tu és tulipa em meio às margaridas. O amor é todo você.