Às vezes queria apenas não amar. Ser incapaz de me apaixonar romanticamente por qualquer pessoa que fosse. Ou então ser desprovida dessa válvula propulsora que me faz saltar de penhascos, linda e sorridente, sem antes ver o que tem embaixo.
Queria descobrir onde é que vendem essa tal de astúcia que as pessoas desenvolvem depois que o coração machuca. Onde vende essa armadura que ensina a se proteger das feridas?
Queria comprar amores correspondidos em banca de jornal, preço de figurinha, em pacotes com três.
Queria arrancar o coração do peito e deixar apenas o cérebro tomar as decisões. Preservaria o coração em vinagre, feito picles. Intacto, inacessível, indolor.
Preciso arrumar um pote de vidro.E mal sabe ela, boba que é, que o culpado de tudo é somente o cérebro, essa cabeça louca que ela tem. O cérebro é quem dita, o coração só diz amém.
Mês: agosto 2011
Coração maior do mundo
Quando você me conheceu, há quase dez anos, eu era uma menina que acreditava. Eu tinha sonhos, planos e o maior de todos eles era o amor. Era romantiquinha, acreditava em príncipe encantado, em contos de fada reais e até mesmo no para sempre.
Você, por outro lado, era muito parecido com o que é hoje. Um menino sem muitos planos e o maior coração do mundo. E foi exatamente por esse maior coração do mundo que me apaixonei. Você me faz rir. Você desbrava o mundo comigo. Você me ensinou coisas que nunca teria aprendido sozinha. Você me ensinou o que é amor incondicional, e também as dores mais doloridas que já tive.
E hoje sou tão diferente. Já não gosto mais de música eletrônica, já não passo carnavais em Salvador. Eu mudei tanto que às vezes nem eu me reconheço. Passei a desacreditar, muito mais do que acreditar. Em tudo. Já não acredito mais em para sempre, já não tenho minhas crenças religiosas tão firmes como antes. Mas olha nos meus olhos enquanto te falo, ainda acredito no amor. Ainda acredito em nós.
E embora me sinta tão longe daquela menina sonhadora, me encontro mulher nela todos os dias. Apenas pelo coração.
Agora segura na minha mão e vem caminhar comigo. Ainda tem estrada.
Quietude
Bem ali na curva do teu ombro é onde mora minha quietude. É na sua escápula que deito todos os meus silêncios.
Pois quando fecho os olhos, te encaixa os lábios na minha testa, rodeia meu mundo com teu braço comprido e aconchega minha perna entre as tuas coxas.
E permanecemos assim em silêncio, com qualquer coisa na televisão, não sei bem ao certo; estou morando em minha quietude.
A curva do teu ombro é o silêncio oco dentro da água.
É útero sagrado, é paz, é mágica.
Fecha minhas pálpebras com teus lábios de enseada e adormeço em sua imensidão.
Ites gringas
Mudar de país é descobrir coisas em você que não conhecia antes. Eu, por exemplo, nunca tive alergia a nada. Foi só morar aqui por um tempo para descobrir uma horrorosa labirintite irritativa no inverno, que me deixava tonta de não conseguir andar na rua. Estranho? É o efeito dos ventos do norte, meu amigo. Experimente-os na sua orelha para perder completamente o equilíbrio. Por causa disso, passo três meses tomando Gingko Biloba.
Na primavera e verão, outra alergia desconhecida: bloody hayfever. Alergia a pólen – no meu caso, de grama, o que é pior. Paulistanos não têm acesso ao pólen de nada, convenhamos. Não entendia as constantes dores de cabeça, bem parecidas com uma crise horrível de sinusite. Olhos inchados, vermelhos, lacrimejando. Nariz escorrendo, coçando. Tem dias que parece que te deram uma surra e uma bigornada na cabeça.
Daí você pensa comigo, pobre criatura, tem alergia a pólen e foi morar no mundo encantado dos cortadores de grama. Sim, porque já acho que isso chega a ser cultural e os ingleses começam a substituir animais de estimação por cortadores de grama. Aliás, isso é o meu primeiro sinal de que a primavera chegou: bloody lawn mower. Tipo celebração, dança da chuva e tal, saca? Aqui é assim: nos primeiros raios de sol o povo sai pro jardim, em seus rituais de adoração. É um flashmob do ditado que fala da grama do vizinho ser mais verde.
Estou escrevendo este texto porque a viada da vizinha tá cortando a porcaria da grama, e ela cortou não faz nem uma semana. A dança do sol aqui na terra dos teletubbies é esporádica, frequente e cheia de surpresas. Viada. E eu quase me matei atrás do meu remédio.
Quer ver alguém que sofre de hayfever enlouquecer? Ligue um cortador de grama sem dó do lado dele (este lado pode ser metros e metros de distância). Mas o faça enquanto ele ainda não tiver tomado o antialérgico. Melhor: o faça às seis da manhã, enquanto ele ainda estiver dormindo. Daí a sequência é assim: ao primeiro sinal do bloody cortador de grama, você dá um pulo da cama (estilo alarme de incêndio). O quarto tá escuro, você tropeça no pé da cama, no celular, na cômoda e, se for como eu, até no fio de cabelo que tá no chão. Bate a cabeça na prateleira, SE MATA no quarto, tentando achar o remédio no escuro, porque o desespero é tanto, galera, que você nem pensa em acender a luz. Lembra do cheiro da torta do pica-pau, que ele voava em direção à fumacinha? É tipo assim que eu vejo o pólen chegando, só que eu fujo dele (só dá pra ver na minha cabeça). É uma race against it. Quem chega primeiro: a porcaria do pólen ou o seu remédio.
Daí você toma o remédio, fecha todas as janelas, se esconde debaixo do edredom, porque tem outro segredo: se a filha da puta da hayfever chegar antes do antialérgico fazer efeito, já era. É só um por dia.
Sobre a solidão
Um dia você aprende que a solidão não é uma coisa só, ela é um rio cheio de afluentes, e todas essas ramificações já deveriam ser suficientes pra te fazer companhia. A solidão é um emaranhado de pequenas estradinhas escuras que, cedo ou tarde, vão fazer parte do caminho. E não importa quantas vezes e quais delas você já conheça, ainda tem um monte de solidão aí esperando.
A solidão é boa, viu. A solidão te rasga por fora até conseguir te virar do avesso. E quando te vira e expõe as partes que você teima em esconder, ela as esfrega na sua cara. Os medos, os traumas, as dores, as cicatrizes, tudo lá escancarado no avesso de você. E não há momento mais sublime na vida do que ter seu avesso jogado na sua frente, como carcaças usadas de açougueiro.
A solidão é boa como uma pequena sala de cinema. Poltronas de couro vermelhas, um filme antigo e chiado, quase se perdendo na tela. A solidão é a uma exposição sua, nua, para você mesmo.
Então sente-se e assista ao seu próprio filme. Reveja suas cenas em carne viva. Pegue uma taça de vinho, um garrafa de cerveja, sei lá, coloque uma música gostosa – a solidão não tem trilha sonora. E enfrente as suas carcaças antes de dar espaço às moscas. Solidão com moscas não é bom.
Se enamora
Uma das coisas mais lindas da minha infância, num cover delicioso.
Uma das letras mais bonitas já escritas para músicas infantis.
Memórias para @karicast_
Era muito grande pra tuitar, virou post.
Eu tenho uma memória absurda. Mas absurda mesmo. De lembrar da minha festa de dois anos de idade, detalhes que não estão em fotos, videos, slides. Quando a minha irmã ler isso, vai querer me bater.
Estou ouvindo “Trem da Alegria” no youtube e lembrando uma cena específica.
– Eu, minha mãe, meu avô e minha irmã no carro (não me lembro se era a Parati da mamãe, ou o Golzinho do vovô).
– Frente da primeira casa onde a gente morou, na Vila Madalena.
– Nós duas no banco de trás, Trem da Alegria no rádio tocando “Ioiô”.
– Karina, viciada em “Ana Maria”, comendo dois bolinhos de chocolate com recheio de baunilha.
– Nós duas lendo os ingredientes do pacote e planejando fazer “Ana Maria” em casa.
Tem de caber o mar
Em toda palavra que escrevo, tem de caber o mar.
Em toda palavra que escrevo, há de se naufragar.
Se solto minha escrita ao vento, receba-a em pergaminho enrolado dentro de garrafa de rolha.
Receba papel rasgado, salgado, amarelo, feito lágrima em folha.
Se solto minha escrita ao vento, abra todas as janelas e aguarde.
Palavras lhe chegarão ferozes, feito temporal de fim de tarde.
É que em toda palavra que escrevo, tem de caber inteiro o mar.
Em toda a palavra que escrevo, há de caber um pouco amar.
