Tenho mania de desfechos, de começo-meio-fim. Tenho mania de me despedir e de dizer que amo como se fosse boa noite.
Costumava achar que essas manias estavam relacionadas ao fato de contar estórias, inventar enredos. Mas não. Minha mania de desfecho tem a ver com perdas.
Perdi pessoas e seus últimos suspiros. Não as vi indo embora, não previ partidas a tempo. Perdi o último adeus, perdi a última despedida, perdi o eu te amo engasgado em mim para sempre. A única coisa que disse é que eu voltaria amanhã; e o amanhã foi muito tarde.
Tenho pavor de que alguém vá embora sem saber o quanto é amado por mim. Tenho receio da dúvida, do coração angustiado sem entender claramente o significado de sua existência na minha vida. Tenho medo de que nunca saibam o quanto me mudaram, o quanto me inspiraram, o quanto me lapidaram com seus impactos.
Procuro sempre deixar um pedaço de mim em palavras, afinal, é o que de melhor tenho para oferecer. Então não se assuste se eu disser que amo cedo demais, se eu vomitar em versos tudo o que sinto, não se preocupe se eu for sempre tão coração, não me ache esquisita por nunca deixar conversas em aberto.
Eu aprendi na marra que é preciso deixar que a vida corra em seu ritmo. Eu não tenho expectativa nenhuma quando eu me despeço de alguém, nem ao menos espero que retribuam meu amor, que jorra líquido pelos meus poros. Mas, por favor, permita-me transbordar por todos os meus inteiros. Eu nunca soube aprisionar amores.
E gostaria muito que soubesse todas
as noites, quando coloca a cabeça no travesseiro, que meu amor está sempre contigo, todos os dias, até o nosso último adeus.
A menina
Algo claramente estava fora de lugar. Algumas gavetas reviradas, um vazio que não preenchia nunca, uma sucessão de acontecimentos errados. Por onde andava aquela menina que tecia tantos sonhos e que depositava sua crença mais profunda no coração dos outros?
Sentia falta de não sentir os ombros, de ter sorrisos largos, não suportava essa estranha sensação de que algo lhe pesa na própria face: guardava a vida inteira em volta dos olhos. Ao seu redor, um escudo defensivo protegia todas as suas paredes. Quando foi que eu mudei? – se perguntava.
As pessoas que a conheciam há tanto tempo sussurravam adjetivos que não mais combinavam com aquela armadura negra, pesada, que lhe dilacerava a pele e moía os ossos. Fardos. Ainda tentava arduamente guardar o pouco que sobrava de doçura por dentro, mas esvaía-se sem pressa pelos dedos, feito areia fina em ampulheta. A vida era tão dura, mas não precisava ser. Havia se tornado refém das próprias escolhas, talvez por conta desse vício em encarar tudo como um desafio, em superar, crescer, evoluir. Não queria nunca continuar na mesmice, embora não notasse que, agora, a armadura era o que tinha de menos efêmero. A mesmice do caos, uma bagunça constante.
E como em prece, sussurrava baixinho, seus versos preferidos de Mia Couto, com a esperança de que eles lhe trouxessem de volta. E eles lhe traziam mãos pequenas para segurar-lhe as mãos calejadas que doem constantemente. A criança lhe sorria com os olhos, aquele brilho que não conseguia mais encontrar, como se no fundo a criança soubesse que fora sempre tão teimosa e acabaria enfrentando seus próprios monstros sem receio.
Me dá a mão – dizia. E o fardo de tantas décadas cabiam inteirinhos em dedos gorduchos de uma mão tão pequenina. Passou alguns minutos fitando os furinhos que tinha entre os dedos e que sua avó tanto gostava. Vamos – disse a menina – preciso que te olhe de novo.
“É então que surges
com teus passos de menina
os teus sonhos arrumados
como duas tranças nas tuas costas
guiando-me por corredores infinitos
e regressando aos espelhos
onde a vida te encarou.”
A menina levava aos espelhos. A menina era um constante cordão que a mantinha ligada à sua essência e não permitia que afundasse em pedra.
Preciso de mais tempo para nós duas.
Mão no ombro
Hoje assisti à um super 8 de quando você era criança, acho que tinha uns seis anos. Teu olhar esvaziava a câmera, você sempre teve um dos olhares mais cheios que já vi. Havia nele aquele brilho teu, aquela esperança bruta de uma criança que acredita nas pessoas, que espera pelo que há de melhor, já que durante a infância o melhor está sempre por vir. Havia no fundo dos teus olhos escuros aquela ingenuidade leve, quase sorrindo pra mim, e me doeu tanto perceber que você ainda não fazia ideia do quanto se machucaria nos próximos vinte anos.
A vida nunca te foi branda. Durante teus próximos anos você armazenou fardos pesados demais para um ser humano. A vida te esmagou como a um pequeno inseto e eu nada pude fazer que não fosse observar como você reagiria e esperar teu melhor.
Você sempre foi meio fênix e independente do tombo, sempre se levantava por inteiro. Vez ou outra, embora desmoronando em pedaços, erguia-se ali, forte, esperando o próximo desafio, a próxima porrada. Continuava caminhando como um desses lendários guerreiros medievais que, com o peito cheio de flechas, ainda continuava em pé.
E eu sei que às vezes o dia em você morre cinza, teu corpo esfria como se nenhum abraço no mundo acalentasse. Eu sei que chora entrelaçando os joelhos de vez em quando, em um desejo quase idiota de voltar ao útero da tua mãe. Eu sei que o desespero escorre gelado sob o teu rosto noites adentro.
A tempestade não te dá muita trégua e a bonança é sempre breve. A vida testa tuas forças, teus limites, teu poder emocional. E eu te acho a pessoa mais forte do mundo, embora saiba que odeia ser forte o tempo todo e este é outro dos fardos que carrega.
Hoje eu só queria puxar esta criança que me olha a alma pelo vídeo e me sorri um sorriso torto, como se soubesse quem eu sou. Hoje eu queria puxar toda a tua ingenuidade em um abraço e acolher-te na minha imensidão. De onde eu te olho não existe dor, apenas admiração. Mas queria muito te colocar no colo e te dizer “minha criança, um dia suportará todas as dores do mundo e te prometo que estarei sempre contigo, chorando quando tiver que chorar, sorrindo quando tiver que sorrir. Serei sempre este peso leve no teu ombro direito, o peso da minha mão quando precisar de amor. Agora só te peço uma coisa: guarda esse brilho nos olhos. Não deixe que a vida endureça tuas esperanças no melhor, porque ainda há o melhor de ti. Guarda teu brilho para o futuro, criança, e acima de tudo, nunca perca essa profundidade abismal que você tem. Agora vai, levante. Seja forte e continue. This too shall pass.”
Pequeno texto sobre você – 1
Que tens os olhos ternos de uma leveza breve que nos esquecemos de dar aos dias. E é nessa ternura que recupero minhas forças todos os dias.
Carta para ventos bravos
Hilda. Lembra como você odiava quando eu te chamava assim? Essa minha secreta mistura entre o personagem mais intrigante de Roberto Drummond e a poetisa. Hilda Furacão Hilst.
Você dizia que eu te rotulava e eu nunca entendi como não conseguia ver o tamanho da amplidão desse codinome que eu te dei. Talvez eu nunca tenha te dito, mas minha bisavó se chamava Hilda. Diziam ter sido uma das mulheres mais fortes que a Bavária já teve.
Hilda significa batalhadora. E, como você, eu não conheci mais ninguém. Nunca imaginei que um coração tão gigante e puro pudesse brigar por tanta causa que a maioria de nós, corrompidos pela adultice, considera perdida. Você tem a garra de uma criança que quer mudar o mundo. E eu acho a coisa mais linda quando você chora aos soluços por algo cruel que aparece na televisão. Você tenta me explicar por que tudo aquilo te incomoda e, com o rosto vermelho – principalmente o nariz – balbucia entre lágrimas que não entende a humanidade. Ah, minha pequena e secreta Hilda. Se ao menos a humanidade tivesse uma fração dessa tua sensibilidade, desse teu jeito avesso de olhar o mundo, dessa fé cega em acreditar que há sempre o lado bom dentro de alguém. E talvez seja por isso que você brigue, lute, construa essas frases tão eloquentes e cheias de verdade dentro dessa sua cabecinha brilhante.
Hilda, minha poetisa. Admiro tanta coisa em ti. Essa sua maneira de deslizar o lápis no papel quando precisa organizar os pensamentos, essa mania quase mágica de acordar no meio da noite para escrever uma frase qualquer no celular. Esse teu jeito infantil de se aninhar no sofá do canto e vomitar versos em um papel que não fazem sentido algum pra você.
Ah, Hilda. Não sei se gosto mais das tuas crônicas para o jornal ou dos poemas que encontro amassados no cesto de lixo. Diz que não eram bons e eu os guardo numa pasta para um dia mostrar o quanto você se boicota em teus talentos.
Furacão. Foi assim que você surgiu em mim e, pra ser bem sincero, eu já quase não me lembro quando tudo começou. É como se existisse uma linha do tempo na minha vida que dividisse o antes, o durante e o depois de você. Embora o depois nunca tenha saído de fato do durante.
Eu queria te contar o quanto perdia o ritmo da minha respiração cada vez que seus olhos grandes e negros me varriam por dentro. Eu queria te dizer que em todos esses anos, eu não sei exatamente o que é, mas eu nunca consegui me desprender de você. Quis te perguntar como estava, o que fazia. Quis saber se sentia a minha falta, quis dividir contigo a banda nova que descobri e sei que adoraria e o festival de filmes que fui ano passado. Aquele show no porão de uma taverna em Amsterdam, quando pensei tanto em ti. Quis te contar que finalmente encontrei a casa da Gertrude Stein e fica na rue de fleurus e, minha pequena Hilda, tenho em mim a cena do teu rosto emocionado se estivesse comigo lá.
O calor da tua respiração no meu pescoço ainda é quente. Teus longos cílios ainda piscam cada vez que fecho os olhos. Você foi o vento mais bravo que eu já tive. Você me levou contigo e me deixou sem mim. Você me fez enxergar o melhor de mim. E não importa quem estivesse comigo em todos estes anos, e olha que gostei muito de cada uma delas, você sempre esteve presente. Foi sempre você. E eu não sei explicar o que é esse sentimento, mas o procurei desesperadamente em outras pessoas. A grande verdade, minha menina, é que ninguém preenche tanto minhas lacunas como você. Ninguém entende meus vazios tão bem. Ninguém se encaixa no vão entre meu peito e minhas coxas como você se encaixava.
Eu tenho medo de que um dia não consiga encontrar alguém que me estimule tanto. Que me inspire, amplie meus sentidos humanos e me amorne desse jeito. Tenho medo de nunca mais admirar ninguém que eu possa ter ao meu lado.
Por favor, não entenda esta carta como um apelo. Eu apenas precisava tirar algumas pedras do meu peito. Gosto que se sinta amada. Como ainda o é.
Te guardo em uma boa parte da minha vida. E espero que o tempo amenize essas correntes nossas. Ou espero, e não posso fingir que não, que um dia bata na porta de casa – ainda é a mesma – molhada de chuva, com o sorriso rasgado apertando os olhos negros entre as bochechas.
Ainda deixo minha vida aberta, na esperança de que meu vento mais bravo me varra outra vez.
Grito
Vomita teu coração em um muro de pedra. Silêncio. Oco, eco. O som não volta. Esmurra o murro, enfia o dedo no meio da ferida, jorra teu sangue em grito. Machuca, deixa machucar. Dói, deixa doer. Ainda ama, ainda aguenta. Aguenta?
Teu silêncio morto é um punhal no meu peito, que moves delicadamente de um lado para outro com esses olhos que não mais reconheço. Quem é você? Que me afunda a lâmina entre as costelas, aumentando meus vazios? Quem são vocês dois? Mistura-te em pena, em ódio, em frustração e dúvida. Reage feito um cachorro de abrigo, covarde, no canto, de castigo. Reage! Vomita também esse teu muro de pedra, quero ouvir o som do cimento trincando, esse coração de aço quebrando. Grita, pelo amor de deus, grita!
Até que ponto vale a pena insistir no que não tem mais jeito? Ou tem?
Sempre
Que venha sempre leve o toque da tua mão na minha
Emaranhando em silêncio teus dedos compridos entre os meus
Que venha sempre nítido o meu reflexo na tua íris
Pois quando borra, tenho medo de adeus
Que permaneça sempre doce essa tua voz no meu ouvido
Fundo, o buraco da tua cabeça no travesseiro
Que sejam sempre quentes
os beijos na coxa e no umbigo
E as noites geladas de Janeiro
Feliz novo
Todo ano novo é aquela velha história, vamos virar a página do livro e começar (ou continuar) o que deve ser começado (ou continuado).
Seria muito fácil comprimir sentimentos, dores, amores, risos, lágrimas, ganhos e perdas em um espaço tão pequeno de 365 dias, fechá-los numa caixinha e esquecê-los numa prateleira, à deus dará, criando pó. Como uma boa e velha agenda de adolescente, onde a fugacidade fica esquecida assim que a última página termina.
A verdade é que algumas memórias precisam de anos para serem guardadas nessa prateleira empoeirada. Existem risos que feriram tão forte, lágrimas que curaram tão mal que não há 31 de dezembro que amarele essas lembranças.
Mas o bom é que um dia tudo chega. O tempo, seja quão dolorido for, será sempre teu melhor amigo. E aquela foto sorrindo não doerá mais, quiçá exaltará qualquer tipo de sentimento nesse teu coração remendado. Aqueles olhos que te brilhavam o mundo não terão mais brilho algum aos seus. E assim, em qualquer ordinário dia dos 365, um dia essa leveza entra aí dentro de ti, com uma paz que chega a ser imensurável – ah, apenas os corações doídos conhecem o bem desta paz.
E o que ficou, vai, o que trouxe, leva, como um pequeno riacho de água doce, pequeno e constante, teu amor todo flui. Passou. Agora sim, cinco anos depois sente escorrer pelos nós na garganta. Leve, agora a dor é líquida. Leva.
O bom da vida é que sempre existe uma página nova a ser preenchida. Às vezes, o novo é um livro inteiro. E não existe nada melhor que fechar uma história, colocá-la naquela prateleira empoeirada e dizer, fique aí, já não me inspira mais. E com o coração sereno perceber que todas as histórias são bonitas, mas aquela que se vive hoje, esta que se escreve agora, é infinitamente melhor.
Olha pra trás e desprende-te das coisas bonitas e findas. A tua única constância é a página que está aberta.
