Carta para ventos bravos

Hilda. Lembra como você odiava quando eu te chamava assim? Essa minha secreta mistura entre o personagem mais intrigante de Roberto Drummond e a poetisa. Hilda Furacão Hilst.
Você dizia que eu te rotulava e eu nunca entendi como não conseguia ver o tamanho da amplidão desse codinome que eu te dei. Talvez eu nunca tenha te dito, mas minha bisavó se chamava Hilda. Diziam ter sido uma das mulheres mais fortes que a Bavária já teve.
Hilda significa batalhadora. E, como você, eu não conheci mais ninguém. Nunca imaginei que um coração tão gigante e puro pudesse brigar por tanta causa que a maioria de nós, corrompidos pela adultice, considera perdida. Você tem a garra de uma criança que quer mudar o mundo. E eu acho a coisa mais linda quando você chora aos soluços por algo cruel que aparece na televisão. Você tenta me explicar por que tudo aquilo te incomoda e, com o rosto vermelho – principalmente o nariz – balbucia entre lágrimas que não entende a humanidade. Ah, minha pequena e secreta Hilda. Se ao menos a humanidade tivesse uma fração dessa tua sensibilidade, desse teu jeito avesso de olhar o mundo, dessa fé cega em acreditar que há sempre o lado bom dentro de alguém. E talvez seja por isso que você brigue, lute, construa essas frases tão eloquentes e cheias de verdade dentro dessa sua cabecinha brilhante.
Hilda, minha poetisa. Admiro tanta coisa em ti. Essa sua maneira de deslizar o lápis no papel quando precisa organizar os pensamentos, essa mania quase mágica de acordar no meio da noite para escrever uma frase qualquer no celular. Esse teu jeito infantil de se aninhar no sofá do canto e vomitar versos em um papel que não fazem sentido algum pra você.
Ah, Hilda. Não sei se gosto mais das tuas crônicas para o jornal ou dos poemas que encontro amassados no cesto de lixo. Diz que não eram bons e eu os guardo numa pasta para um dia mostrar o quanto você se boicota em teus talentos.
Furacão. Foi assim que você surgiu em mim e, pra ser bem sincero, eu já quase não me lembro quando tudo começou. É como se existisse uma linha do tempo na minha vida que dividisse o antes, o durante e o depois de você. Embora o depois nunca tenha saído de fato do durante.
Eu queria te contar o quanto perdia o ritmo da minha respiração cada vez que seus olhos grandes e negros me varriam por dentro. Eu queria te dizer que em todos esses anos, eu não sei exatamente o que é, mas eu nunca consegui me desprender de você. Quis te perguntar como estava, o que fazia. Quis saber se sentia a minha falta, quis dividir contigo a banda nova que descobri e sei que adoraria e o festival de filmes que fui ano passado. Aquele show no porão de uma taverna em Amsterdam, quando pensei tanto em ti. Quis te contar que finalmente encontrei a casa da Gertrude Stein e fica na rue de fleurus e, minha pequena Hilda, tenho em mim a cena do teu rosto emocionado se estivesse comigo lá.
O calor da tua respiração no meu pescoço ainda é quente. Teus longos cílios ainda piscam cada vez que fecho os olhos. Você foi o vento mais bravo que eu já tive. Você me levou contigo e me deixou sem mim. Você me fez enxergar o melhor de mim. E não importa quem estivesse comigo em todos estes anos, e olha que gostei muito de cada uma delas, você sempre esteve presente. Foi sempre você. E eu não sei explicar o que é esse sentimento, mas o procurei desesperadamente em outras pessoas. A grande verdade, minha menina, é que ninguém preenche tanto minhas lacunas como você. Ninguém entende meus vazios tão bem. Ninguém se encaixa no vão entre meu peito e minhas coxas como você se encaixava.
Eu tenho medo de que um dia não consiga encontrar alguém que me estimule tanto. Que me inspire, amplie meus sentidos humanos e me amorne desse jeito. Tenho medo de nunca mais admirar ninguém que eu possa ter ao meu lado.
Por favor, não entenda esta carta como um apelo. Eu apenas precisava tirar algumas pedras do meu peito. Gosto que se sinta amada. Como ainda o é.
Te guardo em uma boa parte da minha vida. E espero que o tempo amenize essas correntes nossas. Ou espero, e não posso fingir que não, que um dia bata na porta de casa – ainda é a mesma – molhada de chuva, com o sorriso rasgado apertando os olhos negros entre as bochechas.
Ainda deixo minha vida aberta, na esperança de que meu vento mais bravo me varra outra vez.

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