Se eu te deixei ir, não foi por falta de amor. Foi por excesso. Foi porque você não correspondia mais aos meus sentimentos e sequer se deu a chance de continuar. Muito mais à você do que à mim.
Meu coração já não acelerava mais, baby, minhas pernas não tremiam. As palavras que antes mexiam tanto comigo resolveram descer pela garganta como pequenos goles de água gelada, daqueles que trincam os dentes. A gente sabia que não dava mais certo, no fundo, a gente sempre sabe. Faltou você me pedir pra ficar, me pedir pra lutar, faltou você querer um pouco mais. Amor, por si só, é barco furado; quando só um rema, rema em círculos.
Eu podia ver nos teus olhos que o que sentia por mim era apenas carinho. O teu amor, eu sei, era de outro alguém. E nem ao menos tenho coragem de culpar essa outra pessoa, porque talvez ela tenha te amado até mais do que eu. Amores de fora não derrubam relacionamentos sozinhos, eles apenas permitem que o que está frágil, caia.
E eu não sei viver de carinho, menino. Eu preciso da intensidade da paixão e do conforto do amor. Eu quero noites selvagens, mas também quero romance e jantares à luz de velas. Eu quero aquela única massa que você sabe fazer, aquele vinho que você guarda para ocasiões especiais. Eu quero o lado da tua cama assistindo à qualquer coisa na televisão sem falar nada, sem cobrar nada, segurando a minha mão. Eu quero aquele olhos nos olhos silencioso que diz tudo. Eu quero os beijos inesperados, eu quero a tua fome. Eu quero um eu te amo, não um coração via sms. Eu quero buquês de rosas brancas, porque você sabe que são as minhas preferidas. Eu quero conhecer Monte Verde. Quero estar com alguém que me faça sentir que o tempo pára e o mundo espera.
A verdade é que a gente tentou. E eu tenho a consciência tranquila. Eu dei tudo o que eu tinha de mim e você deu apenas o que podia. Por medo, por negligência, por falta, quem sabe. Você foi a maior ausência presente que eu já senti, você permitiu que todo o encanto escorresse pelos meus dedos.
Só quem está preparado para se expor e para doer consegue vivenciar a amplitude de uma história de amor. Só quem não exclui possibilidades consegue mergulhar nas melhores experiências. E o teu medo te cega. Ninguém vai te machucar mais que você mesmo, baby, essa é a grande verdade. Todo amor há de doer um pouco para ser amor.
Se eu pudesse te dar um conselho agora, pediria que abdicasse dessa tua mania de carinho pelas pessoas. Aprenda a amar de verdade, a se entregar, a doer, custe o que custar. Vá atrás de quem deixa teus sentimentos em carne viva, quem te tira o sono. A vida é muito curta para trancar amores na gaveta. E aprende: só existe crescimento quando se vivencia os dois lados da moeda.
Seja feliz. Mesmo.
Bang.
Estou preso aos barulhos desta tarde. A sala vazia, o café amargo, o vento entrando por baixo da porta. A tarde está perfeita assim. As nuvens cinzentas no céu têm a pressa e a testa franzida dos engravatados; Deus, faz tempo que não vejo nuvens sorrirem.
Começa a chover lá fora. Cada pingo na janela me ensurdece. A chuva me mói no seco da sala, chuva moída em mim. Gelada, ríspida, meu corpo treme e eu me encolho no canto, viro o rosto para a parede. Estiletes de água. A chuva me corta o pouco que sobra de prosa. O vento me confunde. Bang. Um pingo. Bang. Outro pingo. O papel em branco se desmancha em poça na mesa. Choro uma chuva moída que corta. E sangra. E é leve, é tão leve que tem o peso da minha humanidade. Bang. Bang.
Tentativa
E ela tentava.
Tentava uma promoção, um aumento, tentava esquecer o ex e se apaixonar pelo namorado novo que queria casar com ela. Tentava engravidar, terminar o PhD e emagrecer. Tentava encontrar os amigos toda semana, tentava voltar para a academia, tentava ter disciplina. Ela tentava não reclamar da vida, ser uma pessoa melhor e mais paciente. Tentava não ter medo de coisa tola e nem preconceito bobo. Tentava fazer aquele bolo de cenoura que não fazia há tanto tempo. E de tanto tentar, acabou perdendo o foco e não fez nada direito. A vida parecia uma pedra pesada acorrentada às próprias pernas, mas ela tentava ser otimista.
A menina era um caracol
Sentada na beira de uma pequenina ponte de pedra, a menina me intrigava com aquelas pernas finas entrelaçadas em si mesma duas vezes. Ajeitava o tricot verde musgo, tão grande em seu corpo mirrado que era um tanto de incoerência com a meia calça fina preta, bermuda jeans e botinhas de pele quando lá fora não fazia mais do que cinco graus celsius, quem dirá à beira do rio.
A menina me intrigava em suas pequenas manias, de fazer caracóis nas pernas, de enrolar a mecha de cabelo quase ruivo no dedo, de dobrar e desdobrar a barra da bermuda jeans enquanto olhava o rio quase sem piscar. Ela era um caracol.
Tinha os olhos cheios, como se pouco mais de duas décadas vividas se multiplicassem por quatro. No colo, segurava um caderno de desenhos de páginas amareladas – em época de tablet, eu me perguntava em que ano morava a menina.
Um dia ela me perguntou assim, de quantos sonhos são feitas as coisas morais. E antes que eu respondesse, começou a desenhar com um lápis preto um pequeno castelo de pedras. Eu não fazia ideia do turbilhão de pensamentos que devastavam sua mente aflita. E então continuou:
– Realizada? O que é uma pessoa realizada? Qual o critério, em que planilha ou estatística entra o nível de satisfação pessoal com a vida? Trabalho, amor correspondido, dinheiro? Eu sou feliz, mas também sou triste. Trago um bolso cheio de amargura, outro cheio de gargalhadas. Trago um coração remendado, com feridas expostas cobertas de band-aid – você sabe muito bem que band-aid não cura. Eu não tenho mais ingenuidade para produzir sorrisos incondicionais, a vida me maltrata. Mas a vida também me carrega no colo. E quando ela não dá conta, tenho que levantar por mim mesma e sabe quanto custa cada levantada? A tal da minha inocência e os meus sorrisos incondicionais. Às vezes levanto sozinha porque a vida é água corrente e se eu parar, eu me afogo. Eu sou um poço de perguntas retóricas, porque sei todas as respostas. Eu só não sei se a vida passa enquanto o mundo acontece ou se é o mundo que passa enquanto a vida acontece.
A menina ruiva morava em um tempo alheio à si mesma. Era como a encarnação de alguma mente conturbada, dessas mais geniais que o mundo já viu. Cada frase que saía doce da sua boca ecoava ardida dentro de mim. As frases doíam. As afirmações machucavam e as perguntas retóricas pediam respostas. Talvez eu também tenha quebrado no chão minha ideia de felicidade:
– Eu acho que também sou feliz e triste, mas acredito ter livre arbítrio para escolher.
– Quanto mais você se prende à ideia de liberdade, mais rotula o que deveria ser livre. O livre não tem limite, o livre não permite conceitos. O livre nem ao menos se reconhece livre. As pessoas falam de amor livre – quanta bobagem, todo amor é livre. Só é amor se for livre. Se não é livre, é desejo, é amizade, é paixãozinha. Se não é livre, é posse.
Passei a mastigar azedas as palavras da menina enquanto tentava entender sobre amor, sobre a vida, sobre o movimento natural das coisas, sobre como cruzava as pernas duas vezes. A menina me intrigava como se fosse uma pequena fração de uma consciência minha, como se ela morasse no meu ombro. Eu não sei de onde ela vem nem para onde vai, mas ela foi a resposta. Talvez eu também precisasse ser mais pragmático, as coisas são porque são.
Slides
Era no escuro da noite que o pensamento evaporava. Sua tragédia dormia sobre um travesseiro de espuma fria.
De que adiantava lutar o dia inteiro se a noite lhe atormentava? Talvez por hábito, insistência ou magia, as lembranças lhe socavam o topo do estômago debaixo do edredom. Cada soco, um frame de memória. Um slide de retroprojetor. Cada frame, um vazio no peito.O que sentia não era saudade do que havia passado, era saudade do que poderia ter sido. Talvez, quem sabe, se tivesse existido coragem, se tivesse existido vontade. Se tivesse existido amor.
Mas ainda que remoesse a vida dentro das pálpebras, nunca entenderia. Porque não há o que ser entendido. Há a vida, menina, que é feita de idas e vindas, de amores e desamores. Há a vida, que nada mais é que o encontro do desencontro. É preciso uma porção desses frames de retroprojetor pra contar
uma história. E se você puder chegar lá no fim com uma coleção de slides de sorrisos, tudo fará sentido. Guarde os coloridos, apenas. Os cinzentos não mais farão sentido.
O choro congelado
A chuva escorrendo pelo seu rosto fazia dois cachos em sua franja. A maquiagem borrada escondia on choro que eu conseguia ver em seus olhos. Vermelhos. Tristes. Ela apertava uma mão na outra, mãos secas, judiadas pelo frio de muitos invernos intermináveis em Estocolmo, dava pra ver em suas mãos que este não era o primeiro.
Sua pele era morena, os cabelos pretos e o olhar latino. É fácil distinguir o olhar latino quando se mora tanto tempo fora. O olhar latino é vívido, o olhar latino pensa, julga, ele não apenas olha. São olhares humanos, adultos, cheios de cérebro e sentimentos. Quando você passa muitos anos no hemisfério norte, percebe que o olhar daqui somente olha. Como um bichinho inocente. O olhar latino, não.
A menina olhava fixamente para algum ponto no horizonte, quase cabisbaixa, e andava de um modo que era possível jurar que arrastava malas. Entendi o peso da vida em seu caminhar. Talvez sentisse dores nos ossos, tão comuns nesse frio, mas eu a li como alguém que tinha dores de alma. Sabe Deus que motivo tinha a menina latina de estar em plena Gamla Stan em Dezembro. Andando sobre metros de neve e chorando uma chuva moída. Sabe Deus o quanto carregavam os olhos borrados de maquiagem.
A vida me dá tapas na cara quando encontro pessoas chorando na rua. A menina escondia o choro na chuva e o fardo no andar. Ninguém a notava. A não ser eu, que lhe ofereci um sorriso gélido, que nas ruas do inverno europeu é o máximo de essência que conseguimos carregar. A Europa endurece. O frio enrijece. Quem passa por aqui alguns invernos, congela pequenas partes de si mesmo.
Sobre o Seu João
Toda vez que passa um caminhão muito perto de mim na rua, eu me lembro do Seu João. O Seu João da Dona Maria e da interminável mesa de torresmos.
Talvez tenha sido um fim de semana ou feriado na casa dos compadres dos meus avós, que era como se chamavam uns aos outros, as pessoas nascidas antes da década de 20. Me lembro da Dona Maria velhinha e de uma casa muito simples em alguma estrada de Itu. Tinha um quarto nos fundos com paredes descascadas, cheio de mosquitos, onde não conseguimos dormir. Não me lembro da fisionomia do Seu João. Ele usava um chapéu; mas isso bem que poderia ser fruto de uma infância corrompida por histórias em quadrinhos ou dessa minha mania genética de contar e enfeitar causos. Sabe, quando mais de vinte anos te separam da tua infância fica difícil entender o que era verdade, o que era contado e o que de tão contado acabou virando verdade. Talvez nunca tenha existido chapéu.
Mas se tem uma coisa da qual eu não me esqueço é da mesa de torresmos. Era uma sala com portas enormes de madeira maciça, janelões e uma mesa retangular no centro com toalha florida. Uma mesa sem fim cheia de torresmos. Ou o que parecia sem fim no campo de visão de uma criança de cinco anos. Seu João tinha acabado de fritar os toucinhos e aquele cômodo cheirava a leitão à pururuca, e eu nunca mais vi torresmos crocantes e reluzentes como aqueles.
Algum tempo depois meu avô me contou que Seu João tinha falecido. Atropelado por um caminhão na estrada da frente da sua casa. E posso jurar que o chapéu tinha ficado ali no chão, mas não tenho certeza sobre o chapéu.
Toda vez que passa um caminhão muito perto de mim, eu me lembro do Seu João. E se o Seu João consegue, de alguma forma, saber que eu ainda me lembro dele, deve achar um pouco esquisito ser lembrado por uma mesa de torresmos, um caminhão e um chapéu que talvez nunca tenha exisitido.
Eu amo você
Eu amo você.
Em cada detalhe do teu rosto, pela curva do teu pescoço, dentro dos teus olhos de água.
Em cada lábio rasgado de lado, em cada som falado na emancipação das tuas mágoas.
Em cada gesto de afeto, meu amor procurando teto dentro do teu peito morno. Chama.
Em cada diálogo de olhar, em cada suor escorrido no lado direito da tua cama.
Eu amo você em época de carnaval, até quando acabar o sol nos dias cinzas de inverno.
Nas minhas dores mais profundas, no vazio da noite imunda, no teu abraço quase eterno.
Que és apenas o que nunca quis, que tens o lado errado do meu certo e os meus maiores clichês.
Que eu passaria dias beijando teus sorrisos, confiando o amor no teu espaço fechado.
Eu amo você.
