O presente

Eu sentei naquele banco com as mãos em concha escorrendo sangue, segurando um coração remendado com pequenos pedaços velhos de esparadrapo. Frágil, pulsando quente em puro medo.
Era o presente que você mais queria e temia, porque sabia que não seria fácil: é muita responsabilidade cuidar de corações quebrados na hora errada. E a nossa hora era perfeitamente errada.
– Toma. Leva contigo. Mas me devolve.
Me levantei do banco cego. Não havia mais um fiapo de luz a um palmo de distância que fosse. Escuta, eu não vejo nada e me dá um medo danado do escuro.
Caminhei por uma estrada torta sem saber onde colocar os pés. A estrada era morna e me sorria, mas eu continuava tropeçando. No dia em que caí, voltei ao mesmo banco para pegar meu coração de volta.
Suas mãos não estavam em concha. Meu coração pulsava cinza no chão. Os pedaços haviam se espalhado, todos os remendos que eu tinha feito estavam quebrados de novo. Por que? Se a gente sabia que a hora era perfeitamente errada? Se a gente sabia que não era a nossa história? Por que?
Mas você não sabia meu nome. Você tinha se esquecido de todo o passado. Meu coração te queimou as mãos calejadas, você tinha espinhos por todo o corpo. Não se lembrava de mim, não se lembrava dos meus cacos. Olhava meu coração no chão como se não soubesse o que fosse. Quem ele era, quem eu era. A nossa história.
Você apagou com precisão cirúrgica todos os meus pedaços de você, porque eu te doía demais. Não existiu conversa, não existiu carinho, não existiu amizade. Apenas um grande lapso de vida.

Não foi a primeira vez e não será a última. Eu já remendei todos os cacos novamente, meu coração está muito bem, obrigado. Só nunca entenderei por que as pessoas fazem isso. Quem apaga pessoas, renuncia histórias. Quem apaga histórias, anula a própria vida. Quem apaga os corações dos outros, morre um tiquinho com eles.

Buracos negros

O tempo não cura todas as dores, nem todos os amores. As lembranças amareladas, borradas, quase invisíveis, ainda aparecem dentro das pálpebras dela como pequenos slides de uma época em que era preciso ser mais forte, e ela não o foi. As cenas são difíceis de distinguir a cada piscar de olhos, mas a memória te boicota, menina, te traz à tona o calor do corpo, o coração acelerado, ainda que não se lembre mais de rostos. Os olhos escuros feito duas jabuticabas gordas. Os olhos que nem ao menos podia chamar de estrelas, pois brilhavam sozinhos. Dois buracos negros que engoliram metade da sua vida com meia dúzia de clichês.
Queria guardar a imagem assim: duas jabuticabas sobre o sorriso mais bonito do mundo, só porque era dele. Queria deixar assim, arquivado no passado, indiferente, sem machucar, sem incomodar, sem magoar. Nada que atinja, apenas que brilhe. E que guarde todo o carinho do mundo entre duas pessoas que se amaram tão bonito um dia. Que seja assim.
Ou que seja do jeito que ele preferir, diminuindo-se aos poucos entre os dedos dela para que chegue, enfim, a esmagá-lo entre o dedão e indicador. Que não sobre nada, nenhuma porta aberta. Que os cacos de todos os sentimentos construídos sejam irrecuperáveis. Que a frieza supere todo o calor dividido entre dois corpos. Que seja assim: pequeno, insignificante, medíocre. Um grandessíssimo nada dentro de dois olhos de buracos negros.
O tempo não cura, apenas cicatriza. E algumas cicatrizes coçam só para lembrar que a dor ainda existe.
É que o efêmero parece que tenta, a todo custo, ser eterno.

– Pequeno, menina, esmaga toda a pequenez entre os dedos até que suma com um último sopro de lembrança.

 

Secreto

E entre algumas pessoas desconhecidas, você se apresentou à mim com nome e sobrenome. E eu te sorri um sorriso secreto de quem tem histórias nossas para contar.
Ninguém percebeu, mas teus olhos já brilhavam em mim há um bocado de tempo.

O dia chora

O dia chora. É uma chuva tão fina que você só percebe a tristeza do dia se olhar para a escuridão. Gotas minúsculas de lágrimas que o sol não consegue esconder. Não molha o chão, a chuva é mansa e doída. E é gelada somente em que for capaz de percebê-la.
O dia chora os amores perdidos, os amigos esquecidos. O dia chora a falta do abraço e o último beijo. A chuva chora o frio do peito, um vazio oco, Eco. As risadas varridas, os sorrisos trocados, os olhos que brilham. A chuva chora a moça que virou a esquina porque não podia amar. O dia chora o velhinho sentado na praça e seu chapéu de perdas. O dia chora o medo que o menino tem do escuro por dentro. A chuva chora os que lembram, os que não esqueceram, os que ainda esperam.
O dia chora uma chuva tão fina e triste, que não se sente, que mal se vê. É a tristeza silenciada, o nó na garganta, é o sorriso falso do dia no sol. E eu não sei bem ao certo se o dia está triste ou se o dia é apenas poesia.

Borboleta amarela

Minha irmã me mandou uma foto de uma borboleta amarela essa manhã. É como um código secreto nosso de infância desejando boa sorte. Era sinal de dia feliz. Uma gritava “corre, vem ver uma borboleta amarela!” e sussurrávamos juntas com os olhinhos bem abertos e fixos na borboleta amarela: “sorte pra hoje e pra amanhã”.
Me lembrei agora, então, de um trecho de “Borboleta Amarela” do Rubem Braga, que diz: “Vinde. Vamos tocar janeiro, vamos por fevereiro e março e abril e maio, e tudo que vier; durante o ano a gente o esquece, e se esquece; é menos mal. E às vezes, ao dobrar uma semana ou quinzena, às vezes dá uma aragem. Dá, sim; dá, e com sombra e água fresca. E quem vo-lo diz é quem já pegou muito no sol nos desertos e muito mormaço nas charnecas da existência. Coragem, a Terra está rodando; vosso mal terá cura. E se não tiver, refleti que no fim todos passam e tudo passa; o fim é um grande sossego e um imenso perdão.”
Ah, se eu não acreditasse na sincronicidade da vida talvez deixaria passar despercebido tanto significado. Se eu estivesse um pouco mais distraída, talvez perdesse completamente a minha inocência.
Obrigada, irmã. Obrigada, vida. Que a sorte seja sempre para hoje e para amanhã.

E se a gente se apaixonasse de verdade

Então você olhou lá dentro dos meus olhos e me perguntou, tentando tirar de mim a resposta mais perfeita que eu pudesse elaborar:
– E se a gente se apaixonar de verdade?
Eu ri, sem saber muito o que te falar, sem querer dizer que se a gente se apaixonar, a gente foge junto pra Itália e fica lá vivendo só de amor e aventura, sem querer te dar uma resposta perfeita, porque perfeição e paixão não combinam. Então te digo assim, olha: se a gente se apaixonar, a gente vira uma história bonita. Dessas que foram feitas somente para serem contadas e nunca encenadas. Desses amores que ficam alheios ao tempo e à vida, desses que esperam que um dia, quem sabe, o futuro resolva. Desses amores que devem ser guardados pra outra vida, sei lá, deixa de tanto medo, de tantos dedos. Mania mais masculina essa de querer se pré proteger do que tem apenas potencial pra machucar. Machucar, todo amor machuca, meu bem, quer queira ou não. Meu coração também é de papel remendado, se a gente se esfolar, é fácil achar a borda cortada pra colar de novo. Se a gente se apaixonar de verdade, menino, a gente
resolve depois. Por enquanto só chega mais perto, me invade e me mostra o quanto dá pra amar, agora.

 

* Texto publicado no segundo livro Mundo Mundano, 2011.

Come on, let´s get ready

Larguei a vida inteira e coloquei o meu barco no mundo. Sem nada, além de uma promessa de amor. Trocar a vida todo por um relacionamento é como trocar tudo o que você tem no mundo pelas suas duas mãos fechadas em concha, apenas, segurando vento. Ah, relacionamentos são tão instáveis!
E entre chaminés compridas e estações do ano definidas eu descobri uma porção de coisa. Que todo esse tempo foi uma auto-celebração. Que toda essa vida é incrível. E que eu sou grata pelos meus momentos mais difíceis, pois sem eles eu seria apenas mais uma alienada morando na Europa.
Não tenho pretensão de parecer forte o tempo todo, e quase sempre não sou, e por isso que eu tenho um baita orgulho de mim mesma. Só eu sei o tamanho das pedras em que tropecei.
E crescer é isso. É pertencer à todos os lugares e à nenhum ao mesmo tempo e – ainda assim – se sentir em casa. É se adaptar à falta, ao vazio, mesmo quando tudo está completo. Eu descobri que, se antes eu me achava saudosista, hoje eu sei que o que eu tenho é saudade pura. Eu não superestimo o passado. Eu tenho uma lembrança quase melancólica e muito suave das pessoas, das situações distantes, coisa corriqueira de quem deixa suas raízes.
E enquanto a vida passa, eu tropeço nos obstáculos feito gente grande. De um lado, seguro a mão da menina que eu fui – ela não me deixa esquecer quem sou. Nas costas, carrego a saudade com todo o amor do mundo. E na minha frente tem uma estrada e eu já não mais me importo com o que tem no fim dela. Respiro fundo e espero o amor falar. E ele diz  com aqueles olhos de bolinha de gude: come on, let´s get ready. É hora de seguir. Dane-se o que virá. O que importa é o que está aqui comigo, de mãos dadas, carregado nas costas e ao meu lado. É isso o que eu chamo de vida. Felicidade é paz de espírito.

“Há beleza bastante em estar aqui e não noutra parte qualquer.
Se há alguém para além da curva da estrada,
Esses que se preocupem com o que há para além da curva da estrada.
Essa é que é a estrada para eles.
Se nós tivermos que chegar lá, quando lá chegarmos saberemos.
Por ora só sabemos que lá não estamos.”

(Alberto Caeiro, “Para além da curva da estrada)

Amassou um artigo de jornal com o meu nome.
Pediu outro vinho da casa; Chardonnay era o meu preferido.
Apagou todo aquele álbum do Strokes que ouvimos na minha cama.
Deletou os amigos em comum do Facebook.

Deus, como doía a saudade que não podia ter.