Voluntariando, parte 2

Bom, disse que ia contar então vamos lá.
Como citei no último post, eu e minha prima fazemos um trabalho social em escolas estaduais pobres da cidade de Carapicuiba, periferia de São Paulo.
Na terça-feira, nós passamos o dia em uma delas, fazendo palestras para crianças entre 7 e 15 anos. Sabe, às vezes a gente acha que conhece o outro lado deste país, afinal, a gente acaba tendo contato com pessoas necessitadas. Mas estar ali, imerso no cotidiano deles, é bem diferente.
Antes de mais nada, fiquei impressionada com a quantidade de crianças que não sabia escrever nem letras, nem números. E isso aconteceu até na quinta série!!! Pra mim isso não é novidade. A filha mais nova da Néia, minha empregada, teve meningite séria quando pequena que a deixou com sequelas que interferem no aprendizado. Ela está na quarta-série do primário e não sabe nem escrever o nome. A Néia chegou a ir à escola implorar para repetirem a menina de ano, mas não pode. A que ponto chegamos hein, para uma mãe ter que implorar para reprovarem a filha.
Sobre esse sistema educacional a gente fala depois. O que mais me comoveu na escola foi um menino. E o nome dele era David, o mesmo nome do meu marido. Parece essas coisas de Deus, quando quer mostrar alguma coisa pra gente sabe!
Pois o que me chamou a atenção no David foi simples. Eu estava preenchendo os cadastros com as crianças, um por um. De repente o David levantou a mão e eu fui lá ver se ele precisava de ajuda. Ele aparentemente era igualzinho à qualquer outra criança. Quando cheguei perto dele, ele apontou a sua fichinha e tinha escrito coisas do gênero. Nome: Djhslonuyhg, Telefone: hgjkagdonh e por aí vai. Até aí achei que ele não sabia escrever, então lhe perguntei seu nome. Ele respondeu e eu perguntei seu telefone. Ele disse 123456789. Vi que tinha algo de estranho até um menininho me dizer “tia, ele é ‘doente’, não sabe falar”. Eu pensei “Meu Deus, o que este menino está fazendo aqui!!”. Quis a todo custo conseguir o telefone dele, afinal queria que ele ganhasse os benefícios como todos os outros, não deixaria passar batido só porque eu não conseguia me comunicar com ele. Um outro menininho disse “tia, tem o telefone dele no caderno. David, posso pegar sei caderno?”. Achei aquilo tão lindo.
Eu peguei o telefone do David mas não conseguia parar de olhar pra ele. Os olhinhos dele divagavam pela sala, e eu não tinha a menor idéia de onde estariam seus pensamentos, seu coraçãozinho. David deve ter uns 7 ou 8 anos. Quando a palestra acabou os alunos levantaram, brincaram na sala, gritaram, riram, cantaram. O David se dividia entre ficar sentado quietinho na cadeira, ou sentar no chão abraçado na mochila.
Eu perguntei para a professora, no final da palestra, o que significava ele ali, no meio de todo mundo. Ela me disse “ah, você não viu nada.” O David tem sérios problemas de autismo. E faz parte de um programa do governo de inclusão social. Ou seja, ele tem bolsa em uma escola especial de manhã, mas tem que frequentar uma escola normal à tarde. À princípio eu achei isso terrível. Uma criança autista precisa de cuidados extremamente especiais, eles têm problemas até com o toque de alguém. Qualquer coisa pode gerar um stress imensurável.
Depois tentei ponderar e percebi que esse projeto é muito mais favorável às crianças “normais” do que às que necessitam de cuidados. Elas sim aprendem como conviver com as diferenças. Agora o David, ele não fazia idéia de onde estava, de quem eram aquelas pessoas, às vezes ele me lembrava a falecida nan (avó do meu David que morreu com Alzheimer). Ficava olhando para o nada com um semblante quase que assustado, como se não tivesse a menor noção do que estava acontecendo.
Eu percebi que as outras crianças não zombavam dele, mas também não lhe davam a menor atenção. Eram completamente indiferentes. Eu não sei até que ponto isso é saudável ou não, na minha opinião o David deveria gastar suas tardes em atividades construtivas para o tipo de problema dele.
E a professora me disse que ele não é o pior caso do projeto do governo. Disse que passam pelas escolas crianças cegas, surdas, mudas, com problemas mentais graves e vários outros tipos de deficiência. Disse ter dado aula para uma criança cega e surda. Gente, convenhamos… o que uma criança cega e surda vai aprender em uma escola estadual, com professores despreparados para lhe dar a atenção devida? Minha prima me contou uma história que fez meus olhos encherem de lágrimas. Disse que uma vez deu palestra para uma turma com alunos cegos também. E disse que foi a cena mais linda que já viu. Quando ela falou que os movimentos de escovação têm que ser circulares, uma coleguinha que enxergava pegou o braço da menininha cega e fez os movimentos para ela, pra que ela pudesse entender.
Sobre o sistema educacional do nosso país, não tenho como expressar o nojo que eu tenho disso, dessa maldita lei 9.394 promulgada em Dezembro de 1996. Há onze anos nosso país sofre com a péssima qualidade das escolas estaduais e municipais, com o despreparo e com a falta de oportunidade que nossas crianças têm tido. As alegações dos defensores desta lei são abomináveis: “repetência causa baixa auto-estima nas crianças”. Alguém aqui morreu disso? Problemas de auto-estima estão aí para serem superados, e ninguém está livre deles num país tão cheio de preconceitos. Não vai ser repetindo de ano que a gente vai destruir o amor-próprio de alguém. Pelo menos, de 1996 para trás, ninguém foi um adulto pior por ter repetido de ano. “Sem a repetência, o governo consegue distribuir melhor os gastos com os alunos e atender à um número maior de crianças”. Ah, meu amigo, vá para a puta que o pariu. De verdade. “A repetência constitui um pernicioso “ralo” por onde são desperdiçados preciosos recursos financeiros da educação. O custo correspondente a um ano de escolaridade de um aluno reprovado é simplesmente um dinheiro perdido. Desperdício financeiro que, sem dúvida, afeta os investimentos em educação. Sem falar do custo material e psicológico por parte do próprio aluno e de sua família.” Sério. Vai pra puta que o pariu ao cubo.
Gente, sabe quanto nós colocamos no bolso do governo por ano?????? OITOCENTOS BILHÕES DE REAIS, só em impostos e taxas. Façam as contas, isso dá mais que DOIS BILHÕES DE REAIS POR DIA em impostos, entrando nos cofrinhos públicos.
Agora, se você multiplicar os 44 milhões de crianças matriculadas no ensino médio e fundamental (segundo a UNESCO), por R$ 643 – que é a média que o governo gasta com um aluno POR ANO, chegará à quantia de pouco mais de vinte e oito bilhões de reais. Isso é o que o governo gasta com todos os alunos matriculados em um ano. Em catorze dias de impostos, as contas da educação já estão pagas. Agora vem neguinho dizer que repetir de ano prejudica a estabilidade financeira do governo??
É por essas e outras que este país não vai pra frente. Quer mais um dado? “Nos últimos três anos, as despesas do gabinete da Presidência subiram de R$ 223 milhões por ano para R$ 350 milhões, de acordo com os registros do Tesouro Nacional, levantados pela organização não-governamental Contas Abertas.” Tá bom pra você? 350 milhões de reais só para o Gabinete do nosso digníssimo.
Agora se a saída para mudar este país era a educação, a saída pediu pra sair. E pela tangente. Não dá pra confiar num país que empurra a educação com a barriga, que considera alfabetizada uma criança que não sabe distinguir números de letras.

Um conceito da nova economia política – ramo recente dessa área de estudos – diz que o índice de corrupção de um país é inversamente proporcional ao nível de investimentos e de crescimento econômico.

É por isso que, por aqui, você vê os números do “desenvolvimento” aumentando tanto quanto os escândalos.

Um comentário sobre “Voluntariando, parte 2

  1. Flavia disse:
    Avatar de Flavia

    Concordo com o “vai pra puta que o pariu ao cubo”. Da nojo soh de ler o seu post, esse governo podre, podre, podre!

    Desculpa, mas nao aguentei. Estou sentada aqui chorando com tudo isso, que nem uma pata.

    Bjs.

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