Não é de hoje

Não é de hoje que eu não deito no teu colo e te invento um soneto pra mostrar o quão importante você é pra mim. Não é de hoje que não emaranho meus dedos nos teus quando apenas quero que você fique. Não é de hoje que não seguro teu rosto com as mãos e olho bem dentro dos teus olhos pra dizer que te amo tanto. Que sempre te amei. Que sempre te quis. Que sempre deu. Que a gente sempre inventou. Que a nossa história é uma das mais bonitas.

Não é de hoje que a gente é desencontro, é tropeço. Não é de hoje que a gente não dá certo.

No entanto, também não é de hoje o quanto teus olhos brilham quando vêem os meus. Ou que há uma faísca visível quando a gente se toca.  Não é de hoje que nossos corpos se encaixam milimetricamente perfeitos em toda essa imperfeição. Não é de hoje que eu habito teus pensamentos mais indomáveis, tuas noites mal dormidas e o lençol da tua cama. Não é de hoje que eu te seguro quando você cai e que você está comigo quando eu mais preciso. Não é de hoje que aquele eu te amo engasgado vem saindo dos nossos peitos. Não é de hoje que a gente tropeça em palavras tentando apenas entender o óbvio. Que também somos hoje e que com certeza seremos amanhã. Sempre.

Quiçá

No dia em que te encontrei acabei me perdendo. Meus olhos, cegos em você, ainda não sabiam, mas eu me perdia um pouco a cada piscar seu. Meu peito, esse lugar tão conturbado, perdia todo o ar com todos os clichês que você dizia. Minhas pernas perdiam o controle dos músculos a cada vez que seus dedos tocavam minhas mãos. Você me cegava lentamente com esses teus sorrisos. 

Eu fui perdendo meus parâmetros, em apenas três horas eu perdi todos os meus pré conceitos, medos e verdades absolutas. Eu queria você pra mim é isso era o bastante. Você ali, nós dois, um bar inteiro que só serviu de cenário, aquela nossa mesa que de repente virou um mundo. Eu poderia morar a vida inteira naquele instante.

Já se passaram seis anos desde que eu me perdi em você. E em todo esse tempo, eu ainda não descobri como me encontrar. Somos areia movediça; quanto mais tentamos sair, mais nos afundamos em nós mesmos. 

Eu sei que você também se perdeu em mim em algum lugar dessa estrada torta. Eu sei que você também afunda. A única coisa que eu não sei é que gosto tem seu beijo na chuva ou como é o calor do teu abraço numa tarde de sofá. Com que cores você acorda ou como deve ser bonito passar uma manhã te vendo dormir. Eu não sei como é deitar na areia pra ver as estrelas contigo ou se você chora quando tem crise de gargalhadas. Não sei qual o cheiro da tua camisa ou o gosto do café que você faz. 

Quiçá um dia a gente possa continuar se perdendo um no outro, mas na mesma estrada. Quiçá um dia eu possa olhar lá dentro de você e desatar sem medo esse ‘eu te amo’ da garganta.

Escudo

Às seis horas da manhã ela abre os olhos. Só se espreguiça quando a mente está tranquila e talvez hoje não seja um desses dias. Levanta com os cabelos emaranhados, faz carinho no cachorro que dorme ainda na beira da cama, dá um beijo no menino que resolveu passar a noite na sua cama. De camisola longa, ela alimenta os três gatos que berram por atenção e se enroscam entre as suas pernas. “Hoje é apenas ontem”, sussurra.
Liga a chaleira, coloca duas colheres de pó de café na cafeteira manual, uma colher de adoçante, uma fatia de pão na torradeira, tira a manteiga, o leite e a mesmice na geladeira. Engole toda a sua rotina sem sentir o gosto.
De manhã não tem paciência pra se vestir mas durante o dia pensa que podia ter se arrumado um pouco melhor. Passa maquiagem, gosta dos batons vermelhos, faz parte do ritual de palhaço esconder as dores por baixo das cores.
Trabalha oito horas por dia. O mesmo trabalho, a mesma agenda, o mesmo escritório, quase as mesmas pessoas. Onde foram parar meus últimos sete anos?
Poucas coisas de verdade a encantam. Já faz um bom tempo que os dias não têm tanta graça. Mas ela tenta bravamente ser quem foi um dia, embora não consiga escapar de quem se é. Olha duas borboletas rodopiando pelo caminho de flores por onde caminha todas as manhãs, de onde vieram estas flores? Gosta de bichos, acima de qualquer outra criatura, então sempre procura o passarinho mais próximo, o gato que cruza a rua, o cachorro latindo por trás do portão. Dá bom dia aos bichos, aos velhinhos e às crianças, mas não gosta muito dos adultos.
Atravessa a avenida com centenas de pessoas – essa selva de pedra já me tirou todo o ar. Ela é bonita, graciosa, desperta olhares em meio à multidão. Mas quem a vê em sorrisos e batom vermelho não sabe de quantas lágrimas ela é feita. Quem repara no vestido colorido não sabe o quanto coçam suas cicatrizes ou quanto pulsam suas feridas abertas. Quem tenta seu coração, não faz ideia do trabalho que deu remendá-lo durante todos esses anos.
Ela caminha em passos fortes e decididos toda a sua fragilidade. Mas anda em frente, sorri para o mundo como quem está pronta para um novo dia que nunca chega. Quem a vê não sabe, mas ela é uma fortaleza de areia.

Hoje é mais uma oportunidade de ser feliz e talvez amanhã não seja apenas hoje.

O choque é essencial 

Existe sensacionalismo? Sim. Existe exploração de imagem? Também. Mas amigos, sinto em dizer que às vezes o choque é simplesmente essencial. Numa sociedade tão cega pela violência, onde seres humanos viram estatísticas e dados de jornalismo, é cada vez mais difícil se sensibilizar. É cada vez mais difícil ter empatia por algo que não acontece dentro do nosso perímetro de existência. Já dizia o velho meme, se não desenhar, ninguém entende. Percebe agora por que chocar, às vezes, é essencial? 

O horror de uma guerra te perturba exatamente como? Expondo a realidade nua e crua para a qual fechamos os olhos todos os dias, simplesmente porque não acontece com a gente? Chacoalhando nossa zona de conforto e mostrando toda a nossa impotência? 

Vocês me desculpem, mas horror e exploração, na minha opinião, é o que esses povos do Oriente Médio têm vivido há décadas, mudos e massacrados por Talibã, Boko Haram e Estado Islâmico. Horror é o grau de desespero dos pais em colocar seus filhos em um bote superlotado,  porque arriscar a vida no mar é mais seguro que ficar em terra firme.

Fechar os olhos para o que não faz parte do nosso dia a dia não aniquila o horror. 

Se não fosse pelo pequeno menino Sírio, o mundo acordaria mais um dia ignorando o que hoje é o maior êxodo humano desde a segunda guerra mundial. Se não fosse pelo menino Sírio, entidades como o MOAS (Migrant Offshore Aid Station) não teria recebido mais de €180mil em doações em menos de 24 horas. Se não fosse pelo menino Sírio, os governos Europeus não estariam sofrendo a pressão de hoje, dia 3 de Setembro de 2015, para reverem suas leis de asilo político. 

Se alienar é proteção, e é compreensível até certo ponto. Se fechar em sua própria zona de conforto é escudo, mas não podemos permitir que o nosso conforto nos cegue. E é exatamente por isso que o choque é essencial. 

Talvez se parássemos de ignorar o que não é compartilhado na nossa timeline, o mundo fosse um lugar bem mais justo e empático.

Tango

Sabe, eu poderia te escrever mil páginas sobre ela e ainda assim duvido muito que consiga entender toda a dimensão que ela ocupa. Foi na primeira vez, quando meus olhos dispersos entre livros e pessoas se fixaram nos olhos dela – e ela já me olhava – que eu soube que alguma coisa muito incrível estava para acontecer. Eram duas faíscas tristes. Havia um brilho, uma chama, quase que uma vida inteira nos olhos dela, mas eu sentia o peso de quem viveu demais aqueles quase trinta anos. 

Ela rapidamente desviou o olhar quando percebeu que meu mundo havia parado. Tinha algo nela que me paralisava todos os músculos do corpo. Ela era linda. Mas além de linda, ela era pesada. Ela tinha tanta bagagem no canto dos olhos que eles se derramavam simetricamente sobre as suas bochechas rosadas. Ela trazia um buraco negro inteiro nos olhos. 

Os anos se passaram e eu nunca fui tão feliz e infeliz ao mesmo tempo. Deus, como ela me doía. Ela foi o erro mais certo que já tive. Ela foi a imperfeição mais perfeita que eu já conheci e em cada pedaço do seu corpo eu morri um pouco. E nasci também. E em todos esses anos, que foram muitos, eu conheci os extremos entre morrer e nascer, entre a felicidade e angústia, todos ao mesmo tempo. Porque ela, na verdade, nunca foi inteiramente minha. Ela era dela. Completamente dela e do mundo inteiro, menos minha. Eu não passava  da catarse da sua loucura criativa.

Ela era livre. Ela era cheia. Ela era triste como um longo tango de Gardel, mas quando sorria, ah, ela era inteira blues. E eu só aprendi a dançar com ela.

É difícil acordar sem o peso da coxa dela sobre a minha, mas mais difícil ainda é não poder vê-la sentada na mesa da cozinha, bebericando seu café forte, dedilhando a beirada da xícara cheia de tristezas. É difícil passar um dia sequer sem sentir as curvas erradas do seu corpo, o gosto da pele e o calor das suas virilhas. Eu a reconheceria em braile, se cego fosse.

E ainda que venham novos amores, novas histórias, eu sei que em mim ela nunca morrerá. Ela é viva como uma chama que não se apaga nunca; quanto mais eu assopro, mais oxigênio ela queima. 

Quando a gente pega um bicho

Quando a gente pega um animal, nunca se sabe exatamente quem resgatou quem. No fundo, a gente acreditou que aquele bichinho precisasse da gente mais do que qualquer ser humano neste mundo. Como ousaram deixá-lo de lado? Como ninguém se interessou por ele antes? O que teria acontecido com ele se não estivesse comigo? Não sabem o que perderam. Digo isso todos os dias.

Quando a gente adota um animal, imagina que o processo seja de entrega, mas ao longo dos anos percebe que o processo é realmente reverso. Adotar um bicho é puro recebimento. 

Somos salvos por lambidas, rabos abanando, ronronados e pulinhos de felicidade todo santo dia. Somos salvos por aquela manha exclusiva que nosso bicho nos atribui e que nos torna alguém único. É como ser batizado. Minha coelha tem mania de ficar entre as minhas pernas e me dar cabecadinhas na canela, apenas comigo. Minha gata tem um miado só meu, um uréu uréu muito alto e com o erre bem pronunciado. Meu cachorro fechava os olhos sempre que me abraçava. É o reconhecimento. É o processo de resgate que te faz vivo, te faz único. 

Não há dia ruim que não melhore com   tanta alegria quando abrimos a porta de casa. Não há dia estressante que não acalme com o ronronar sobre a sua barriga. Não há nada que supere o olhar de entrega de um bicho. 

É no olhar que os bichos amam, principalmente aqueles que não emitem sons. É no olhar que identificamos suas pequenas personalidades tão incríveis, cada qual a sua maneira. É no olhar de vulnerabilidade e, ainda assim, confiança absoluta, que a gente se resgata todo dia. É na troca. É na barriga pra cima, mostrando sua parte mais frágil, é no enrolar de corpos, no abraço espontâneo.

Costumo acreditar que bichos curam. Que despertam sorrisos mornos e gargalhadas genuínas mesmo quando não temos força para ver graça na vida. Que nos revitalizam sempre que colocam seus pequenos focinhos bem perto do nosso nariz para dividir o mesmo ar. 

Quando você pega um bicho, meu amigo, quem é resgatado é apenas você. Quem tem bicho é salvo todos os dias.

A casa escondida dos meus avós

A casa dos meus avós paternos era um pequeno esconderijo. Eu adorava a ideia de subversividade em subir até o oitavo andar de elevador e pegar uma escadinha escondida, que dava para o único apartamento que ficava em cima do prédio. Era o esconderijo no topo do mundo. 

Vó esperava a gente na porta, abraçava forte e me chamava de “minha boneca”, depois contava os furinhos da minha mão. Ela fazia o melhor macarrão do mundo. Na cozinha do apartamento escondido havia sempre uma vela de sete dias acesa para o meu pai. E enquanto ela rezava e olhava para a vela, cozinhava o espaguete, acrescentava gemas de ovo, manteiga e queijo parmesão. Já disse que era o melhor macarrão do mundo? Mesmo tendo feito inúmeras vezes, nunca teve o mesmo sabor. Tinha sabor de casa de vó é isso nunca poderá ser reproduzido.

Vovó puxava as cadeiras da cozinha para a sala e as colocava na frente do sofá, para que servissem de mesinha  para mim e para a minha irmã. Ao lado da TV, havia uma toalhinha de crochê feita à mão por ela e dois porta-retratos: um do meu pai, outro do meu avô. Ambos em branco e preto, muito semelhantes. E essa foi a presença mais constante que tive do meu pai durante a minha infância – a vela de sete dias e a fotografia ao lado da TV. 

Na casa dos meus avós não se dormia em época de carnaval, a escola de samba ensaiava e o samba entrava até pelas narinas. Vovó cantava o boi da cara preta e me enchia de medo antes de dormir, mas  a maldade do boi se dissolvia em samba e eu adormecia no seu quarto branco de portas corridas.

Do meu avô Rinaldo, tenho poucas lembranças. Lembro de caminhar de mãos dadas com ele pelo antigo posto que ficava na esquina da Inácio com a Girassol para andarmos de Variant verde. Lembro de pequenos flashes de sua existência durante meus primeiros seis anos de vida. Mas lembro-me claramente do dia em que partiu e vovó entrou aos prantos pela porta da casa da tia Santa. Levaram-nos todos – as crianças – para a área de serviço para que não ouvíssemos os choros. E alguém, talvez minha mãe, não me lembro ao certo, teve que responder às perguntas incessantes dos cinco netos que não entendiam nada sobre a morte. “Estão vendo aquela estrelinha ali piscando? Vovô foi morar lá”. 

E por muitos anos da minha vida acreditei piamente que toda estrela que piscava no céu significava que alguém estaria de mudança pra lá. E tudo o que morria, iria morar em alguma estrelinha piscante.

Olhar para o céu à noite nunca mais teve outro significado, senão lembrar os que já me foram. 

Branco

Os dias passam e a gente vai vivendo. Fingindo. Não sendo.

A vida passa e a gente vai sorrindo. Partindo. Morrendo. 

E o que fica é a pele grossa da cicatriz provando que a gente é cada vez mais escudo por fora – e por dentro.