Para uma avenca partindo

“(…) deixa eu te dizer antes que o ônibus parta que você cresceu em mim de um jeito completamente insuspeitado, assim como se você fosse apenas uma semente e eu plantasse você esperando ver uma plantinha qualquer, pequena, rala, uma avenca, talvez samambaia, no máximo uma roseira, é, não estou sendo agressivo não, esperava de você apenas coisas assim, avenca, samambaia, roseira (…) você não cresceria se eu a mantivesse presa num pequeno vaso.”

Leia “Para uma avenca partindo”, Caio Fernando Abreu. Texto na íntegra aqui.

Urgente

Porque eu já tô atrasada pra ir trabalhar, mas ando sem pressa nenhuma. Cai o mundo em água lá fora e a previsão de ter que caminhar embaixo dela me apetece muito e nada… É domingo.

 

… a cidade lá fora, com gentes falando sempre alto demais, sem parar, entrando e saindo de lugares, bebendo, comendo coisas, pagando contas, dançando alucinadas, querendo ser felizes antes da segunda-feira: urgente”

. Caio Fernando Abreu, em Estranhos Estrangeiros .

Por Drummond

“Sei lá. O melhor é não procurar muito. Tragam pacotinhos vazios. A paz deve estar lá dentro.”

PS: Não fiz nem a metade da minha to do list….

Um pouco de Caio…

… para o fim de semana!
Delícia!

Carta Anônima – Caio Fernando Abreu

“Tenho trabalhado tanto, mas penso sempre em você. Mais de tardezinha que de manhã, mais naqueles dias que parecem poeira assentada aos poucos e com mais força enquanto a noite avança. Não são pensamentos escuros, embora noturnos. Tão transparentes que até parecem de vidro, vidro tão fino que, quando penso mais forte, parece que vai ficar assim clack! e quebrar em cacos, o pensamento que penso de você. Se não dormisse cedo nem estivesse quase sempre cansado, acho que esses pensamentos quase doeriam e fariam clack! de madrugada e eu me veria catando cacos de vidro entre os lençóis. Brilham, na palma da minha mão. Num deles, tem uma borboleta de asa rasgada. Noutro, um barco confundido com a linha do horizonte, onde também tem uma ilha. Não, não: acho que a ilha mora num caquinho só dela. Noutro, um punhal de jade. Coisas assim, algumas ferem, mesmo essas que são bonitas. Parecem filme, livro, quadro. Não doem porque não ameaçam. Nada que eu penso de você ameaça. Durmo cedo, nunca quebra.
Daí penso coisas bobas quando, sentado na janela do ônibus, depois de trabalhar o dia inteiro, encosto a cabeça na vidraça, deixo a paisagem correr, e penso demais em você. Quando não encontro lugar para sentar, o que é mais freqüente, e me deixava irritado, descobri um jeito engraçado de, mesmo assim, continuar pensando em você. Me seguro naquela barra de ferro, olho através das janelas que, nessa posição, só deixam ver metade do corpo das pessoas pelas calçadas, e procuro nos pés daquelas aqueles que poderiam ser os seus. (A teus pés, lembro.). E fico tão embalado que chego a me curvar, certo que são mesmo os seus pés parados em alguma parada, alguma esquina. Nunca vejo você – seria, seriam? Boas e bobas, são as coisas todas que penso quando penso em você. Assim: de repente ao dobrar uma esquina dou de cara com você que me prega um susto de mentirinha como aqueles que as crianças pregam umas nas outras. Finjo que me assusto, você me abraça e vamos tomar um sorvete, suco de abacaxi com hortelã ou comer salada de frutas em qualquer lugar. Assim: estou pensando em você e o telefone toca e corta o meu pensamento e do outro lado do fio você me diz: estou pensando tanto em você. Digo eu também, mas não sei o que falamos em seguida porque ficamos meio encabulados, a gente tem muito pudor de parecer ridículos melosos piegas bregas românticos pueris banais. Mas no que eu penso, penso também que somos meio tudo isso, não tem jeito, é tudo que vamos dizendo, quando falamos no meu pensamento, é frágil como a voz de Olívia Byington cantando Villa-Lobos, mais perto de Mozart que de Wagner, mais Chagal que Van Gogh, mais Jarmush que Win Wenders, mais Cecília Meireles que Nelson Rodrigues.
Tenho trabalhado tanto, por isso mesmo talvez ando pensando assim em você. Brotam espaços azuis quando penso. No meu pensamento, você nunca me critica por eu ser um pouco tolo, meio melodramático, e penso então tule nuvem castelo seda perfume brisa turquesa vime. E deito a cabeça no seu colo ou você deita a cabeça no meu, tanto faz, e ficamos tanto tempo assim que a terra treme e vulcões explodem e pestes se alastram e nós nem percebemos, no umbigo do universo. Você toca minha mão, eu toco na sua.
Demora tanto que só depois de passarem três mil dias consigo olhar bem dentro dos seus olhos e é então feito mergulhar numas águas verdes tão cristalinas que têm algas na superfície ressaltadas contra a areia branca do fundo. Aqualouco, encontro pérolas. Sei que é meio idiota, mas gosto de pensar desse jeito, e se estou em pé no ônibus solto um pouco as mãos daquela barra de ferro para meu corpo balançar como se estivesse a bordo de um navio ou de você. Fecho os olhos, faz tanto bem, você não sabe. Suspiro tanto quando penso em você, chorar só choro às vezes, e é tão freqüente. Caminho mais devagar, certo que na próxima esquina, quem sabe. Não tenho tido muito tempo ultimamente, mas penso tanto em você que na hora de dormir vezemquando até sorrio e fico passando a ponta do meu dedo no lóbulo da sua orelha e repito repito em voz baixa te amo tanto dorme com os anjos. Mas depois sou eu quem dorme e sonha, sonho com os anjos. Nuvens, espaços azuis, pérolas no fundo do mar. Clack! como se fosse verdade, um beijo.”

Aaaah…

“Seu coração disse pra sua cabeça, vá, e sua cabeça disse pra sua coragem, vou, e sua coragem respondeu, vou nada, mas sua boca não ouviu e beijou.”

beijo2111

Adriana Falcão, trecho do livro “A Máquina” (o mesmo do filme, que todos vocês deveriam assistir!)

Tão bonitinho!!!

Quase-Novembro

“(…) Respirou fundo. Morangos, mangas maduras, monóxido de carbono, pólen, jasmins nas varandas dos subúrbios. O vento jogou seus cabelos ruivos sobre a cara. Sacudiu a cabeça para afastá-los e saiu andando lenta em busca de uma rua sem carros, de uma rua com árvores, uma rua em silêncio onde pudesse caminhar devagar e sozinha até em casa. Sem pensar em nada, sem nenhuma amargura, nenhuma vaga saudade, rejeição, rancor ou melancolia. Nada por dentro e por fora além daquele quase-novembro, daquele sábado, daquele vento, daquele céu-azul – daquela não-dor, afinal.”

Caio Fernando Abreu, em Ao Simulacro da Imagerie, Estranhos estrangeiros.

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Ai, vício. Ai, Caio.

– Quando a noite chegar cedo e a neve cobrir as ruas, ficarei o dia inteiro na cama pensando em dormir com você.
– Quando estiver muito quente, me dará uma moleza de balançar devagarinho na rede pensando em dormir com você.
– Vou te escrever carta e não te mandar.
– Vou tentar recompor teu rosto sem conseguir.
– Vou ver Júpiter e me lembrar de você.
– Vou ver Saturno e me lembrar de você.
– Daqui a vinte anos voltarão a se encontrar.
– O tempo não existe.
– O tempo existe, sim, e devora.
– Vou procurar teu cheiro no corpo de outra mulher. Sem encontrar, porque terei esquecido. Alfazema?
– Alecrim. Quando eu olhar a noite enorme do Equador, pensarei se tudo isso foi um encontro ou uma despedida.
– E que uma palavra ou um gesto, seu ou meu, seria suficiente para modificar nossos roteiros.

(Silêncio)

– Mas não seria natural.
– Natural é as pessoas se encontrarem e se perderem.
– Natural é encontrar. Natural é perder.
– Linhas paralelas se encontram no infinito.
– O infinito não acaba. O infinito é nunca.
– Ou sempre.

(Silêncio)

– Tudo isso é muito abstrato. Está tocando “Kiss, kiss, kiss”. Por que você não me convida para dormirmos juntos.
– Você quer dormir comigo?
– Não.
– Porque não é preciso?
– Porque não é preciso.

(Silêncio)

– Me beija.
– Te beijo.

“O dia que Júpiter encontrou Saturno”, Caio Fernando Abreu.

A vida, por Emília

Eu tinha talvez uns nove anos de idade quando minha tia chegou com uma caixa de papelão enorme e disse:
– Toma. Eu sei que você é a única que gosta de ler…
E quando eu abri, a caixa tinha a coleção completa do Monteiro Lobato, em capa dura. “Reinações de Narizinho”, “Memórias de Emília e Peter Pan”, “A chave do tamanho” e mais um monte. Foram boa companhia por muito tempo.
E morro de remorso quando penso que não tenho mais coisas como essas, que fizeram parte da minha infância. Queria ter guardado meus bonecos do Cascatinha e do Fofão. Seriam ícones hoje. Queria ter guardado essa coleção e a minha caixa de gibis de capa dura da Mônica. A minha bebezinho, que teve história pra contar... O que me conforma é que sei que todos os meus livros sempre foram doados pela minha mãe para instituições de caridade. E não há nada de mais perfeito nesse mundo do que passar magia de mão em mão.
Deixo aqui um trecho de “Memórias de Emília”, que achei no blog da Rah.

criança-lendo

“– A vida, senhor Visconde, é um pisca-pisca. A gente nasce, isto é, começa a piscar. Quem pára de piscar chegou ao fim, morreu. Piscar é abrir e fechar os olhos – viver é isso. É um dorme e acorda, dorme e acorda, até que dorme e não acorda mais […] A vida das gentes neste mundo, senhor Sabugo, é isso. Um rosário de piscados. Cada pisco é um dia. Pisca e mama, pisca e brinca, pisca e estuda, pisca e ama, pisca e cria filhos, pisca e geme os reumatismos, e por fim pisca pela última vez e morre. – E depois que morre?, perguntou o Visconde. – Depois que morre, vira hipótese. É ou não é?”