Post mega longo. Só pra quem tem paciência.
Domingo é dia de ficar com a família, isso sempre foi. Não é só tradição brasileira, mas principalmente tradição da minha casa. Só que parece que há alguns anos todas as tradições perderam o sentido.
Desde que me lembro por menina, almoçava aos domingos com os meus avós. Eles moravam em um sobrado de dois quartos em Pinheiros, a mesma casa por mais de cinquenta anos. E aquela casa tinha um cheiro de infância que arde o nariz.
As minhas memórias são de almoços compridos, destes com a família toda reunida. Avós, filhos, netos, três gerações ao redor da mesa farta, todo mundo falando ao mesmo tempo. Meu avô começava sempre com o aperitivo, disso não posso esquecer. Por volta das onze, enquanto eu e as outras crianças estávamos assistindo à televisão, ele se levantava e dizia estupefado “agora é hora do meu aperitivozinho”. E então preparava caipirinha de cachaça e mandioca frita. Quase sempre foi igual, e mesmo quando eu já não me amontoava mais na frente da televisão com a minha irmã e meus primos.
Vovô tinha uma criança por dentro que era completamente visível aos olhos. Aos oitenta e pouco, era com ele que assistìamos ao “Pica-pau” comendo amendoins e balas. O pote de amendoins ficava ao lado da televisão, às vezes com outro pote de bolacha champagne, para acompanhar os desenhos. E vovô rolava de rir com o pica-pau.
Eu sempre tive mais carinho por ele, não sei bem se foi isso. Acho que era mesmo afinidade, e todo mundo sabe que ele sentia o mesmo por mim. Éramos como avô e neta perfeitos. O meu único problema com a minha avó era que eu não concordava com a rígida educação grega que ela teve e queria me transmitir. Eu a amava profundamente, mas nossos conceitos eram diferentes, e como ela mesma dizia, eu sempre fui muito bocuda, levantava pelos meus direitos. E isso causava alguns atritos, o que me fez achar que ela não gostava de mim até uma idade quase adolescente. Pura ilusão minha. Vovó era a pessoa mais amável do mundo, do jeito que ela tinha aprendido.
Vovô me ensinava sobre a vida. Eu chegava na casa dele e ele corria a me chamar no jardim. Passava longos minutos me mostrando as novas rosas que abriam, a hortelã que tinha plantado, o manjericão que crescia e atraía vespas, o limoeiro lotado, o pé de acerola vermelhinho. Ele amava as plantas e dividia a vida delas com a gente, os netos.
Lembro que o vizinho tinha uma pitangueira e um pessegueiro. E se a gente pendurasse no beiral do terraço de cima, conseguia alcançá-la. Quantas tardes eu passei com o meu avô, debruçada na mureta comendo pitangas vermelhinhas e cuspindo seus caroços. E quando ficávamos extasiados e abarrotados de pitanga, colhíamos as maduras e levávamos para a cozinha, onde minha avó inventaria um desfecho: geléia ou suco.
Meu avô era daqueles que vivem sorrindo. Quando menina eu cantava para ele a música do Balão Mágico “o meu avô é doce como caramelo, o meu avô é fofo como algodão, o meu avô tem muitas coisas e um castelo, de mentirinha mas é um bruta castelão”. Ele era assim, sonhava um mundo e deixava a gente sonhar nele também.
Ele consertava geladeiras. Já tinha sido frentista e barbeiro, até hoje guardo sua foto envelhicida no preto e branco, na barbearia. E no fundo da casa ele tinha montado uma oficina, era assim que ele a chamava. Na verdade era um quartinho cheio de ferramentas, com uma bancada de ferro que parecia até medieval e a coisa que mais me inspirava e amedrontava: o amassador de dedos. Na vida real aquilo era uma ferramenta que até hoje não sei o nome. Ficava presa na bancada e girava uma manivela para fechar duas partes, provavelmente para segurar alguma coisa. Mas no mundo do vovô aquilo era o amassador de dedos, então ele será sempre isso para mim e eu nem preciso saber o nome de verdade.
Eu precisaria de muitas linhas para contar do meu avô e, na verdade, quero falar sobre domingos. Os longos domingos com eles. Todos os almoços de domingo tinham que ter massa, como uma boa casa italiana. E o que variava era o tipo da massa, fusilli, nhoque, penne, raviolli. Sempre ao sugo, com molho de tomates frescos e muito manjericão, feito em casa. E para acompanhar, sempre frango assado. E na minha memória de menina, o refrigerante – porque era só lá, e só aos domingos que podíamos tomar refrigerante.
Quantas vezes vovó fez nhoque de batatas em casa e nós, pequeninos, passávamos correndo pela mesa da cozinha e roubávamos as bolinhas cruas. Elas eram tão boas de se comer! E tinha também os antepastos, a cebolinha curtida no vinagre que meu avô fazia, a pimenta verde, a sardella e alichella. E não podia faltar em nenhum domingo os filões de pão italiano, receita exclusiva da antiga padaria Pinheirense, até onde meu avô caminhava só para comprar os melhores de São Paulo, como ele dizia. Ninguém fazia pão italiano como a Pinheirense!
O tempo passou e muita coisa mudou, as crianças foram crescendo, os filhos tiveram muitas responsabilidades, alguns casaram, descasaram, mudaram-se para outras cidades, viraram grandes empresários. Mas eu, minha mãe e minha irmã nunca saímos de lá. Morávamos a um quarteirão e não conseguíamos deixar de passar um dia na casa deles.
Vovô e vovó foram ficando velhinhos.Vovó não enxergava tão bem e já não cozinhava, nem copiava receitas da televisão. Vovô estava quase cego de um olho e não fazia mais seus passeios matinais para visitar seus amigos da vizinhança. E a sensação de abandono era um sentimento que não queríamos em nossos corações.
Vovô tinha uma alegria na vida: receber a gente e o meu cachorro em casa. Nada o deixava mais feliz. Vovó já tinha tido três esquemias e ficava mais quietinha do que falante. Ainda era lúcida, mas já se dizia “cansada da vida”. Nós três e meu cachorro continuávamos a tradição do almoço de domingo. Agora quem cozinhava era a Graça, a empregada.
Eu ainda tive o privilégio de trabalhar por anos na minha rua, e almoçava com eles quase todos os dias. Era o momento esperado. Vovô ia á feira e comprava manga para a sobremesa, porque sabia que eu gostava. Vovó pedia para a Graça fazer couve-flor gratinado por minha causa.
Os domingos foram ficando com cara de lembrança, sabe. Chegou o tempo em que tudo o que eu fazia com os meus avós eu pensava, meu Deus um dia sentirei tanta falta disso. Da minha avó comendo melancia de sobremesa todo santo dia, do meu avô bebendo vinho tinto com massa e pão italiano, do barulho da casa, do radinho de pilha, do cheiro de infância.
O primeiro dia chegou e foi o pior dia da minha vida. Foi quando, ainda em estado de choque, eu quase desmaiei ao ver o nome do meu avô na placa do velório. Como doeu, meu Deus, como dói até hoje até mesmo falar sobre isso…
Vovó não aguentou de solidão, coitadinha. Sessenta anos de casamento não poderiam terminar assim para ela. Ela se entregou à uma cama e esperou vovô vir chamá-la, como no meu sonho. Minha avó morreu dois anos depois dele, em 2005. Justamente o ano em que eu estava morando na Inglaterra. Engraçado porque do mesmo jeito que no Natal de 2002 meu avô me disse que seria seu último, no de 2004 eu senti como se estivesse vendo minha avó pela última vez.
E eu me lembro bem desse dia. Eu tinha sonhado que meu avô dirigia seu velho monza, encostava o carro perto de mim dizia “vim buscar a vovó pra pescar”. Ele adorava pescar. E então os dois entravam no carro e iam pescar no morro do Maluf, no Guarujá. Lembro da vovó feliz, das varas no porta-malas, do pote de minhocas. Achei o sonho bonito, mas não me preocupei com ele.
Neste dia, cinco dias depois dela ter completado 90 anos, eu passei o dia todo cozinhando para um jantar de aniversário de uma amiga minha. Voltei pra casa, me arrumei, saí com o David de carro, pegamos outro casal de amigos no caminho e fomos ao jantar. Eu estava feliz, estava na Inglaterra com meu amor, com meus amigos, num dia de festa. E meu celular tocou três vezes, com a minha irmã meio que não dizendo nada. Até a hora que eu achei estranho ela ligar para o outro lado do mundo e não dizer nada. E foi no elevador, no andar do apartamento da minha amiga, que ela me deu a notícia pelo telefone. Minha avó havia falecido, dormindo, e longe de mim. E eu chorei tanto por estar longe, chorei por ter falado com ela no seu aniversário e ela ter juntado tanta força pra dizer que me amava, chorei por ter tido certeza de que aquela realmente tinha sido a última vez que eu a tinha visto. Mas chorei mais por não estar perto. E foi muito difícil me manter normal naquele jantar.
Hoje eu sei que os dois estão juntos, pescando ou sentadinhos um ao lado do outro, mas sempre de mãos dadas. Sei que a lembrança que eu tenho nunca vai morrer, assim como a dor que tenho no coração. A saudade o tempo ainda não curou porque não enxuga minhas lágrimas em nenhum momento que me lembro dos dois.
Hoje a casa está vazia, à venda, e o cheiro de infância parece que foi embora com os meus avôs. Tanta vida tinha naquele lugar e hoje não passa de um conjunto de paredes. A roseira foi a única que resistiu no jardim. E desabrocha rosas, de vez em quando, que deixariam meu avô apaixonado.
O que ficou comigo foi a memória. De tempos felizes que não voltam, de pessoas que não voltam, nem que eu faça força. Nem que eu brigue com Deus. E a parte triste dessa memória é que parece que muito mais coisa se foi com eles. Os domingos não têm mais tanto sentido. Às vezes eu me perco neles, cozinhando meu próprio molho de tomates, tentando manter a tradição pelo menos entre minha mãe, minha irmã e eu. E nem o Natal, que antes era tão lindo e vermelho para mim, é tão especial assim. Parece automático, uma reunião como outra qualquer. E a família… a família perdeu o alicerce. Faz de tudo para se manter em pé, mas balança com qualquer onda. Anda à deriva, levando a vida como está. Sem âncora para dar a sensação de chão.
