A história que vou contar é longa e cheia de dúvidas. É difícil, ao certo, definir com detalhes tudo da forma precisa como aconteceu, por isso dou-me ao direito de fantasiar alguns adjetivos e substantivos. Mas a essência desta história, que não passa do mais puro e verdadeiro amor, esta continuará intacta.
Maria Francesca era seu nome. Ela deveria ter por volta de dezessete anos em 1889. Morava num dos lugares mais lindos da Itália, Marina de Ciró, um vilarejo de praia incrustrado num dos mares mais azuis da Calábria: o mar Jônico.
Francesca tinha cabelos longos e escuros, e grandes olhos amendoados. Seu nariz era vagamente adunco, o que demonstrava uma leve herança moura, da época das invasões. E isto podia-se ver também pelo tom dourado de sua pele, que variava em tons de bronzeado constante.
Raffaele era um pouco mais velho que ela e morava em Ciró, o vilarejo que não tinha praia. Filho de Nicodemo e Risolia, vinha de família de posses, sendo a maior destas uma vinícola que levava o nome do pai. Ele era bem diferente de Francesca, não tinha nos genes a invasão moura, o que lhe denotava tons loiros aos cabelos e olhos infinitamente azuis.
Um dia, e não se sabe muito bem como, Raffaele e Francesca se encontraram pela primeira vez. E algo me diz que este encontro se deu nas praias de Marina. Surgiu um amor bonito, destes vistos em Romeu e Julieta, com todas suas contradições e proibições.
O que sei é que por algum motivo eles não puderam ficar juntos. Não se sabe se por preconceito dos pais de Raffaele, ou por orgulho dos pais de Francesca. Mas é quase certo que o motivo foi por distinção de classes.
Só que o amor era puro e verdadeiro e, por ele, Francesca e Raffaele lutariam com alma. E um dia ouviu-se dizer, lá pelas docas de Marina, que um mundo novo prometia brilhante futuro para quem tivesse coração grande. E que muitos italianos estariam embarcando para bem além da Sardenha, lá depois de todo o Atlântico. Era um lugar chamado Brasile. Lá, bem longe de toda aquela pequenice de Ciró, as esperanças se transformavam em vida.
E foi em 1890 que, muito a contragosto – Francesca e Raffaele fugiram juntos. Ele deixou para sempre um futuro e uma boa parte de dinheiro. Ela deixou a família e o azul infinito do mar Jônico – ela ainda não sabia – mas foi para sempre.
Partiram de Gênova em um navio que trazia muitos deles. Navios que traziam sonhos e esperanças, muito mais que pessoas. A única coisa que sei foi que Francesca trouxe consigo uma miniatura de metal muito pequenina de Santo Onofre. Ela ficava guardada em uma caixinha de lata tão pequena quanto, e foi totalmente feita à mão por sabe-se lá quem. Foi para este Santo que ela rezou por todos os dias de todos os meses a caminho do Brasil.
Raffaele e Francesca vieram em um destes vários navios, não sei o nome ao certo, mas bem poderia ser o Santa Fé, o Caffaro, o Adria ou qualquer outro. Na verdade, pouco importa, já que todos eles traziam os mesmos sonhos. Sei bem é que o navio desembarcou em Santos e, no porto já estavam os capangas dos coronéis.
Diziam que no navio se servia apenas pão preto e chá pela manhã, e batatas pelo almoço. Leite era restringido às crianças de colo e fracionados em meio litro por dia para cada uma delas. E assim foi por muito tempo. E nem ouso me perguntar o que havia de se fazer em um navio por três meses, acordando com a vista das ondas e dormindo com seu barulho. Creio que as grandes novidades eram mesmo os doentes mortos de varíola e febre, que nunca pisaram em terra, e eram jogados ao mar.
Pois bem, mas eu disse dos capangas dos coronéis. Os grandes produtores da nova terra. A história todos vocês devem saber, visto que devem assistir às novelas. Os escravos estavam livres e os coronéis babavam pelos italianos como leões prestes à emboscada. Prometeram mundos e fundos, e Raffaele e Francesca, como não tinham nada a perder, cederam. Atracaram em Santos e seguiram com os capangas para Minas Gerais, para uma fazenda que tanto poderia ser Santa Helena quanto Santa Adélia.
E por lá ficaram por muito e muito tempo, dividindo os sonhos com o café. Ah, este o sonho que não chegava nunca. Há de se dizer que de Minas foram para Araraquara e, entre os dois Estados tiveram onze filhos. Giuseppino era o mais novo deles. Josézinho. Que cresceu ainda como filho de colonos, entre as lembranças dos farrapos que vestia e as mangueiras cheirosas do interior.
Raffaele seguiu seu rumo sem muito querer olhar para trás, o que me faz pensar que sua família é que deve ter sido o grande estopim de toda esta história. Virou a página de um grande livro e começou outro, que ficou pelo novo mundo, pelo tão intrigante Brasile. Francesca sempre sonhou em voltar para Marina de Ciró. A bem da verdade, nunca soube o que aconteceu por lá. Mas mesmo assim foi feliz, e muito feliz, pois se permitiu viver o amor.
Raffaele morreu quando Giuseppino tinha apenas dez anos, mas Francesca teve tempo de conhecer todos os netos brasileiros. A vinícola do pai dele existe até hoje, no mesmo lugar, embora ninguém ainda tenha procurado a gente de lá.
E eu não sei muito bem como tudo isso aconteceu, já que conto esta história como lenda, daquelas que a gente só escuta e não tem provas. Mas sei de coisas suficientes. Sei que o que Francesca nunca imaginou é que um dia alguém faria seu caminho de volta. Demoraria pouco mais de um século, mas esse alguém cruzaria o Atlântico do novo para o velho mundo. Não para a Itália, como ela queria, mas ainda assim para a Europa. E não duraria três meses, mas – aposto que ela ficaria atônita – pouco mais de dez horas, e seria pelo céu.
Sei que Francesca não imaginaria, mas sei que hoje ela sabe. Sabe que a menina que faz seu caminho de volta é a mesma que possui a pequena miniatura de Santo Onofre. Aquela, de lata, que ela trouxe no navio e agora volta de avião. E Francesca sabe, acima de tudo, o que é que leva a menina de volta… Ah, disso ela sabe bem, pois viveu por isso. É a essência, que ainda continua intacta. E não passa do mais puro e verdadeiro amor.


Mi, que historia linda!! Eu queria conhecer assim a historia dos meus avos, ou melhor, até conheci, mas minha memoria não resiste a tanto detalhe. Vou procurar saber mais e depois te conto.
E então, quando é que essa menina vai mais uma vez fazer a viagem de volta pro velho mundo? 🙂
Beijo, amiga. Estou te esperando por aqui!!