Rita era menina de praia, dessas de longos cachos castanhos e pele cor de amêndoa. Tinha grandes olhos negros de onde podia-se ver o mundo todo, e vastos lábios rosados com gosto de jabuticaba. Rita vestia sempre um vestido de renda que vó Xiquinha havia feito antes de morrer, tinha um par destes. E todos os dias ela fazia igual, caminhando à beira mar de pés descalços na areia fina e branca daquela praia perdida no litoral do Brasil. Carregava um balaio com o almoço do pai, quase sempre arroz, feijão e peixe. Ou feijão, pirão e peixe.
O pai de Rita pescava berbigão na Praia Deserta e era até lá que ela caminhava todos os dias, sob sol ardente ou chuva ardida, para levar-lhe o que comer. E enquanto seus pés roçavam a areia, ela inspirava sonhos e expirava juventude. Deixava para traz a imaculada menina e se inebriava da moça que ali se formava. Imaginava que um dia um príncipe da cidade a levaria de automóvel para subir a serra, do lado de São Paulo ou do outro lado, para o Rio de Janeiro. Para nunca mais ver jaqueiras ou cajueiros, para nunca mais sentir o cheiro salgado de mexilhões.
Mas não se parecia nada com o príncipe de Rita o moço que vinha pela praia todos os dias, para também levar almoço para seu pai, que também pescava berbigões. Jorge era franzino, caiçara, tinha cabelos pretos ondulados e olhos de peixe vivo que contrastavam com a morbidez amarelada de sua pele. E seu pai bem que fazia gosto com pai de Rita para que os dois jovens se entendessem.
Em um dia de verão, caminhando pela praia, Rita viu o moço mais lindo que o mar poderia ter molhado ou que a areia pudesse ter tocado. Era Henrique, que corria em sua frente com uma prancha de surf. Cabelos loiros ao vento, pele rasgada de sol, olhos perigosamente verdes e costas esculpidas pelas ondas. Dançava pelo mar como um golfinho, e Rita parou para olhar, só por um segundo.
Durante todo o verão Rita se apaixonou por Henrique, e Henrique se apaixonou por Rita. E a menina descobriu coisas nas areias de Barequeçaba que nunca havia sonhado. Rolou em noites de fevereiro pela praia verde de Guaecá, fosforescente de plâncton, e descobriu sensações, sentimentos, suor e desejo. Até o último dia de verão…
Foi quando Henrique foi embora para um dos lados e não a levou de automóvel. Prometeu ficar com ela para sempre, mas somente quando voltasse o verão. E ela cansou de esperá-lo entre primaveras e outonos, e ele nunca voltava.
E foi quando Rita casou-se com Jorge que, lá do alto da serra, veio a notícia de que Henrique nunca mais havia voltado por ter morrido com o automóvel. E Rita chorou o rio Una inteirinho, com todos seus peixes e vagalumes.
E por toda essa água, adoeceu de amor. E Jorge, que tinha os olhos de peixe vivo, adoeceu por ver sua amada definhar em saudade de um amor que não era o seu. E um dia, como na lenda de Pontal da Cruz, Jorge lançou sua jangada ao mar para nunca mais voltar, e seus olhos perderam o vivo para sempre.
Rita, antes de deixar seu espírito à deriva, pediu para ser levada ao Pontal da Cruz, onde uma cruz se ergue entre dois abricoeiros entrelaçados. E ela mesma repetiu a estória que vó Xiquinha dizia ser verdade verdadeira e que o pai do pai do seu pai havia visto: “Foi-se lá há muito, muito tempo quando uma jovem de São Sebastião se enamorou de um moço que vinha de canoa todas as tardes, lá de Ilhabela para vê-la. Até que um dia ela foi obrigada a casar-se com o filho de um médico, que havia sido nomeado pelo Imperador pra cuidar daquelas bandas. E a moça adoeceu de não poder ficar com o amor da sua vida, e o moço de Ilhabela, vendo a sua amada morrer aos poucos, deixou sua canoa ao sabor das ondas do mar. Foi encontrado morto alguns dias depois e a moça morreu logo em seguida, de desgosto e saudade. O corpo do moço apareceu em Pontal da Cruz, onde colocaram uma cruz de madeira. E lá nasceram dois abricoeiros entrelaçados, para recordar aqueles que morreram de amor.”
Rita estava parada de pé, com o vestido de renda e os pés descalços. Seus olhos negros agora estavam pálidos e seus lábios vastos tinham se esbranquecido de dor. E a moça sentou-se na areia, ao terminar de contar a lenda, segurada em um dos braços por sua mãe e em outro, por seu pai, o pescador de berbigão. Lágrimas escorriam de seis olhos fundos enquanto as ondas faziam a música e os abricoeiros, o coral. E Rita não morreu, mas morreu por dentro e para sempre, bem lá no fundo de seu coração seco. E dizia que ali em Pontal da Cruz, um dia também haveria de ter mais três abricoeiros, ou três jaqueiras, ou mais três cajueiros que fossem. Para recordar os amores que tinham que ter sido e não foram, e os que foram e não tinham que ter sido.




